Translater

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

De amor nunca mais te falarei



De amor
nunca mais te falarei.
Reneguei as minhas mãos
loucas da posse
e, dos meus olhos,
deportei gestos de entrega.
Porque a força que me empurra
é a mesma que me cega.

De amor
nunca mais te falarei.
Nem um passo
terá chão pisado no calar
e, dos meus beijos,
extingui a cor que destrói.
Porque o gosto que me aquece
é o mesmo que me dói.

Por que só me dizes vai
se os teus olhos o desdizem?
Só volto a falar-te de amor
se conseguires que retire
estes punhais enterrados
na carne viva do peito,
de tanto amor arruinado,
amarrotado e desfeito.



Jaime Portela


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O pôr-do-sol rubro e cálido



O pôr-do-sol rubro e cálido
a querer incinerar as lágrimas
que a chegada instila na garganta.
O cabelo solto de areia a viajar
atado no embaraço de lençóis
à espera de nós enlaçados.
A chama a dançar trémula
até que a voracidade da pele
aviste a rebelião das estrelas.
As pernas boquiabertas
a sufocarem o silêncio
e a adelgaçarem as unhas despidas
nas costas transpiradas.
O navio a repetir o grito inquieto
do farol à entrada do teu porto,
sem brumas, sem nevoeiros.
O vazio calcetado de tédio
a desmantelar-se ao sabor
do gozo renovado das marés.
Na garganta, o rouco sim,
a tresmalhar-se pela boca
entreaberta e perdida.
Na fronte, as rugas da recusa
âs cicatrizes perpétuas
da tortura inevitável da partida.



Jaime Portela


quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Do teu peito ainda partido



Do teu peito ainda partido,
restaurado pela seiva
de beijos concertados,
sopros balsâmicos que te despertaram
do sonho já esgotado,
brotaram rosas naturais.

Das tuas mãos, ainda trémulas,
determinadas a espantar as nuvens
e a acordar a modorra
do fim de tarde que te acomete
como um apelo sem vida,
desabrocharam carícias verdadeiras.

Gosto de ti,
pelas rosas que amotinam o teu peito
e pelas mãos de luz arrebatadas
que em noites de sol partilhamos.



Jaime Portela


quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Epopeias



Muito antes do tempo que hoje é o nosso,
as naus fizeram-se ao largo, temerárias,
por caminhos dúbios à descoberta,
iluminadas pelo sextante das estrelas
de um céu de azul nem sempre forrado.

Foram os tempos dos vírus, dos piratas,
da peste, da malária e do escorbuto,
na procela de façanhas
armadas à força e à vela de fidalgos
a navegar sem remorsos,
a cavalo e a bordo da servidão infligida
no carcomido corpo de escravos.

Por toda a parte mais tarde conhecida,
eis que uma nova epopeia se levanta
num corrupio ainda mais dominador,
onde a distância se condensa
e astrolábios e bússolas são inúteis
nos avisos virtuais aos navegantes:
“- Introduza o seu nome e a sua senha”.

Frotas de todo o mundo, em liberdade,
a partilhar o mesmo mar sem fim à vista,
miríades de embarcações embandeiradas
na imensidão de toda a cor e toda a raça
na arte e no engenho do ver e do mostrar,
ainda que haja em cada rota
um Adamastor ou um pirata acantonado
a espalhar o vírus das tormentas.

Com espantos sempre novos, desusados,
a reinventar o fogo-de-santelmo remoçado,
é nos porões de uma aldeia infinita e global,
depois do imperativo
“- Introduza o seu nome e a sua senha”,
que são carregadas todas as vontades
em diluviana profusão de navegantes.

Mas sem ventos de feição,
tudo é silenciado e naufragamos sem velas
que nos façam bolinar:
 “- A senha que introduziu está incorreta.
Digite a sua senha novamente”.



Jaime Portela