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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Permitiste que morressem [104]

(Poema de homenagem a colegas e amigos
que morreram ainda novos, nomeadamente
o Zé Ferreira, o Hugo Vieira, o Fernando Silva e o Arnaldo Rigueiro)

 


Rezo-Te.
Mas temo a recusa nas Tuas palavras
sem rasto nem recurso.
Não enxotas o gato preto da janela.

Ajoelho-me, redobrado.
Fico imóvel no escuro, na Tua luz.
Falo-Te, submisso, sem respirar,
até pintar o Teu rosto na retina.

Medito nas searas
e nos vinhedos a crescer nas Tuas mãos.
Esgano a fome e a sede
na visão dos Teus frutos maduros, divinos.

Acaricio cada grão, cada bago,
de um rosário votado ao desespero.
Esperançado, imploro-Te.

Vejo mosto e massa com fermento
à Tua mesa. Na minha cabeça,
o sino a finados a prensar badaladas.

Não brotou a cura do Teu pão
nem a mão protectora do Teu vinho.
Permitiste que morressem. Impassível.
Deixo-Te, deserto.
Será que Tu existes?

      Jaime Portela

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Erramos na floresta [103]




Erramos na floresta
mas vemos
as nossas árvores
sem idade
onde percebemos
os mesmos sustenidos
nos ramos reservados
aos passarinhos.

Conhecemos a noite
no gesto vão da procura
do tempo ausente de nós
mas sorrimos ao dia
na aventura de momentos
descobertos a pulso
nas asas de regatos de seiva
que nos preservem
mais verdes.

Contrapomos ao dúbio
a certeza de pérolas
que esperam por nós amanhã.


       Jaime Portela


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Morro [102]




Morro
à vista desarmada
dos teus olhos
enquanto cego me arrasto
até ao cume do teu sol
de onde me escorro
moldado em pedra e Sísifo.

Subo e desço alado,
carrego-me e despejo-me,
percorro as ladeiras
de cada um dos teus poros,
beijo-os,
chamo-os pelo nome
[batizei-os
para melhor os discernir]
e colho nas caminhadas
as flores rubras
dos teus orgasmos.

Não me canso,
fortifico-me,
porque as pedras que carrego
são feitas de micas
do nosso desejo.


      Jaime Portela

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A ilha que te cerca [101]




Quando encalho em nuvens de pedra
enraizadas na ausência da vontade,
calo-me, e vejo um silêncio árido
que se espreguiça no horizonte da apatia.

É um silêncio acuado à porta dos sentidos,
um silêncio trespassado por um vento de cardos
que se agrafa aos ossos das palavras já mortas
com punhais de tanta negrura.

Mas foi no mar desmedido deste enfado que te vi,
que gritei à ilha que te cerca,
rainha verde emergida na bruma do silêncio
em cabelos de água de ondas convulsas sem fim.

E o mundo voltou a sorrir nas estrelas
dos teus lábios e no murmúrio dos teus olhos,
porque sabemos ler nos ecos da escuridão
as vozes que compomos corpo a corpo.


      Jaime Portela