quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O parto [054]



Vou procriando embriões de palavras,
que verto a tentar não perder o fio ao enredo,
mas tenho um parto atribulado.
 
Levanto o prematuro, limpo a placenta
e dou-lhe duas palmadas no rabo.
Provo-lhe a semente do grito primevo
enquanto devoro baforadas de vácuo prenhes de fumo.
 
Alfaiate e parteiro, dou uma tesourada de pai indeciso
no cordão umbilical
e lavo o filho de sangue em mil ideias com asas.
 
Coso a boca às feridas, refino pensos,
mas atrapalho-me com nuvens de pó de talco
e quase deixo escapar os versos convalescentes
pelo cano da incubadora.
 
Recomeço, uma e outra vez,
até que as dores da aparição se desenruguem
e Morfeu o não ache nado-morto
para estágio em colchão de sono breve.
 
De candeia em punho,
percorro esquinas e vielas do poema
até projetar o mapa do seu corpo na retina
para radiografar as ideias ulceradas a intimar cirurgia.
 
Do esboço inicial, a martelo e a cinzel,
passo à transpiração burilada
na paciente finura das formas.
 
Certas palavras, ao sentir o bisturi da coerência
a bordar a pele, espetam agulhas
nas pernas de outras palavras para que fujam à dor
e plasmam novas palavras com pinças e ligaduras
num corpo exausto de próteses.
 
Aceitável, o filho, agora com malformações
quase só percetíveis aos olhos do mestre,
penduro-o na parede e abandono-o.
É vosso.
Jaime Portela

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Concerto num auditório quase só cheio de surdos [053]


As palavras escorrem
como solos inocentes de um pianista aprendiz.
As mãos ardem nas teclas
como contraponto ao público embriagado
de frases líquidas
no substrato do verso abstrato.
O destilado entra,
implacável,
nas veias dependentes de ilusões.
O enlevo das palavras,
vertidas na vertigem da miragem,
vai perfurando entranhas
e há cada vez mais sedentos
à porta de vidros à prova de bala.
A provação da verdade das emoções
e o deserto da crua mentira,
espreitam nutridas
no espelho da caricatura dos olhares.
A indecisão
de continuar a comprar ópio maldito
ou de partir o piano a meio do recital,
perfura os tímpanos e não se ouvem respostas.
Mas a esperança
da harmonia dos andamentos
faz continuar o concerto num auditório
quase só cheio de surdos.
Jaime Portela

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Voo nupcial [052]



Não fiques assim, na pele dócil de infanta
a sustentar muralhas no teu olhar,
sem teceres,
nas tuas mãos,
as cores de gestos que projetem livres
novos horizontes.
Não fiques assim, abarcada por rígidos cais
a educar águas na desova cega da espera,
com as mãos a amolecer
acenos de fascínios por metáforas,
agitando sonhos
entoados na dolência prosaica
de cumplicidades já mortas.
Não fiques assim, em quieta contemplação
na corda bamba cativa de fantasmas virtuais,
enquanto gaivotas enamoradas
te sobrevoam livres para escrever contigo
uma história a quatro mãos,
serenando-te,
maior,
no maduro juízo do saber.
Não fiques assim, prende-te a alguém
que não te faça prisioneira,
para que as sombras não estremeçam as asas
do chamamento natural e se convertam
na luz do teu voo nupcial.
Jaime Portela

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O meu anjo não existe [051]



Com o sorriso vazio
e já com pedras na alma ferradas,
vieste sem a chama do teu anjo.
Esgotada de mares e de Natais
navegados à deriva,
com o olhar ensombrado de ideias
que te envenenavam o sangue
a enriquecer-te a tragédia,
com passos duros,
teimosos,
chegaste a pisar vidro partido
no chão de memórias resistentes.
Tímida, voaste com asas de borboleta
atraída pela luz,
amedrontada pelas palavras espalhadas
na mesa do festim à tua espera.
Mas sorriste,
finalmente,
por não teres queimado as tuas asas,
e só então te apercebeste
da presença do teu anjo.
Sorriste…
E continuas a sorrir, mas a dizer:
- O meu anjo não existe…!
Jaime Portela