quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Esta noite [100]




Esta noite,
um por um,               
vou relembrar todos os elos dispersos de ti,
embalados por uma música
embutida em cadências empíricas
de tempos sinuosos a martelar-me a cabeça
num combate desigual,
prenhe de razões maturadas
de tão ensolarada e meditabunda insónia.
Esta noite,
vou procurar todos os embriões de poeiras,
que reúno numa constelação privativa
na gaveta da mesa-de-cabeceira da saudade,
para que sonhos futuros os tateiem vorazes
no afogo de esganar a fome pavloviana
que as tuas imagens irão despertar.
Esta noite,
o combate é desigual, mas,
qualquer que seja o desfecho,
quero quebrar, um por um, os retratos
dos elos que não queremos mais algemar.


Jaime Portela

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Levantei o sol [099]




Levantei o sol
em manhãs de chuva cinzenta,
cosi estrelas
em cortinas bordadas de silêncios,
sem que as palavras
[daninhas que fossem]
tivessem rompido.
Atei as mãos
à ausência do teu rosto,
cravei o corpo que desejo no meu peito,
sem que o sorriso
[hotel de memórias tuas]
fosse varrido pelo sopro do tempo.
Adormeci no sonho
de voar em montanhas de volúpia,
despertei em abismos
de saudade relutante,
sem que as auroras
[madrugadas submersas de ti]
brotassem francas de brumas.
Enquanto isso,
construí outro leito,
para que não adormeças
na pedra fria de palavras.
Espera-te um jardim
onde cultivei as tuas rosas, regadas
com beijos de sol e abraços de lágrimas.


Jaime Portela


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O sol que a tua sombra incendeia [098]



Já caminhei descuidado, em paz,
mas numa luta furtiva contra a ordem, corrupta,
da ditadura que se desmoronou antes da revolta.

Passeei-me pela guerra, amena,
de gritos embriagados na desordem de processos
de revoluções em curso jamais alcançadas.

Também fui fugitivo de práticas embotadas,
de tantas rezas estéreis como de juras surdas ao juízo
em confrarias fartas de talentos boçais.

Até passei fome de palavras interditas,
que não de sardinhas, que não de pão,
ainda que não soubesse pescar
nem tivesse provado o pão que o diabo amassou.

Agora, espero por ti, democraticamente, sem paz
nem revolta, sem rezas nem clamores de antigamente,
sem direito à fome que tenho do teu olhar
de Maria espontânea, ainda que não tenhas o dever
de iluminar o nosso azul sempre inacabado.

Até lá, resta-me o sol que a tua sombra incendeia.


Jaime Portela

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Não há maior fortuna [097]




Não há maior fortuna do que ver-te
a caminhar destemida
[até quase ao infinito da alma]
enquanto os gestos vão morrendo
a cada olhar deslaçado da partida.
Deveria estar assustado
como quem dança com fogo,
ou mesmo apavorado
com a dor forçada pelo espanto,
onde as carícias teriam mãos
de fado vadio queimadas em pranto.
Ou então,
deveria partir relaxado, alegre,
ao som da Marcha Turca de Mozart.
Mas parto apenas saudoso,
por estar certo do retorno
impelido pelos ventos
da melodia sempre nova do teu corpo,
onde nos perderemos facilmente,
e devagar, para que a dança
nos prenda e nos volte a libertar.


Jaime Portela

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Amar é [096]




Amar é escutarmos paraísos
que perpassam sussurros calados
quando a voz arde vibrante
na orelha quente da boca.
É sermos assaltados mansamente
por noites de furor totalitário,
convertidas em chuva
de sol estilhaçado
em mil centelhas buliçosas
às janelas vivas do olhar.
É revestirmos madrugadas
com bálsamos de incenso
a queimar-nos as entranhas de lua.
É perdermos de vista as estrelas
em trajetórias cadentes
engastadas no corpo
a desmantelar-se inteiro
à velocidade da luz.
Amar é vermos,
de olhos fechados por gemidos,
todos os sins que as nossas
bocas quebradas confessam.
É entrar com toda a luz presa da mente
nas portas do Olimpo
escancaradas pelas unhas
que riscam chaves nas costas.
Amar é recriarmos o amor, continuamente,
no ruído e no silêncio partilhados
da entrega e da procura de nós mesmos.


Jaime Portela