quinta-feira, 25 de maio de 2017

À margem dos sentidos [121]




À margem dos sentidos
que as mantêm cativas,
trago comigo palavras soltas
que me querem decifrar,
que lutam entre si
para me retalhar indignamente
e devassar esconderijos
que eu próprio desconheço.

Destes pássaros altruístas,
que cantam por tudo e por nada
continuamente de graça,
não fujo nem me salvo,
porque entre eles e eu
há uma certeza cravada
que se arruína
mal se constrói à deriva no não dito,
naufragando sem rumo
nas brumas do sentido.

Entretanto, em fila indiana,
o rebanho manso das palavras
vai sendo riscado em poemas
vivos de pássaros
pousados nas linhas,
que se organizam
na mira dos contornos de um retrato
que só desvendado adivinho.



Jaime Portela


quinta-feira, 18 de maio de 2017

A flecha [120]




Não viajo a tropeçar
por caminhos impossíveis,
não me recreio galante a escorregar
no gelo de mares aterrados,
nem me sonho a remar por desertos
com dunas perdidas
nos pés descalços a escaldar de dúvidas.
Não luto por causas que penso perdidas,
não entro em duelos de morte
nem durmo em oásis de verdade
condenados à secura circundante.
Por isso,
não sei o que rasga e sacode a minha paz,
não sei o que me atordoa e conduz
à tua mão envolvente,
nem sei por que te avisto,
preto no branco, ao mais brando respirar.
Apenas sei que de ti vem uma flecha
que me acerta a cada gesto,
que me enlouquece
da luz espelhada no teu nome.
Mas também sei que me fere de prazer
toda a carícia imaginada.
Por isso, só pode ser a flecha do Cupido
a vir de ti de amor envenenada…

 


Jaime Portela


quinta-feira, 11 de maio de 2017

Grito [119]




Na bondade do arco-íris,
que quase todos professamos nos olhos
em juízos vivos de seres mortais,
há vergonhas negras no céu
que nos deixam no chão
por não vermos andorinhas
na razão de desgraças tão injustas.

Por outras palavras,
todos gostamos do belo e do útil,
do viver e do crescer a sorrir…
Aceitamos o frio e o calor,
o vento que nos despenteia
e o fim que há de vir.

Porém, porque não gosto nem aceito
o silêncio cinzento, orquestrado,
acuso o olhar cego do Homem
e a proteção ausente dos Deuses
[a assobiar distraídos]
perante a fome obscena, perene,
que enche de morte a barriga caduca
das crianças dos genocídios de sempre.

E grito, porque não rezo
na procissão dos Homens calados
nem canto no coro cego dos Deuses.

 


Jaime Portela


quinta-feira, 4 de maio de 2017

O meu legado [118]




Pensando alto,
só agora concluí que não sou original,
pois não surgi do nada,
não apareci, por artes mágicas,
do vazio ou do éter,
e nem sequer o pecado do começo foi inédito.

Existo por opção alheia e ilusória,
não fui ouvido nem achado e,
muito menos,
criado a partir de um meu desejo.
Sou apenas o produto da ínfima probabilidade
de um projeto de vida aleatório.

Ainda assim,
repiso vivências sentidas,
digo ideias antes ditas com palavras repetidas,
porventura mal pensadas,
e quero de um modo já velho
como Adão queria Eva.

A minha memória genética
encerra lendas vivas,
reminiscências mais ou menos sonolentas
e outras quase mortas,
nos neurónios que andam distraídos
com lengalengas futuristas.

No parágrafo da minha existência,
pareço um amontoado
de palavras despejadas de uma página,
e serei,
na melhor das hipóteses,
um dador de histórias futuras
após o desenlace da última linha.

Mas não quero ir já embora.
Se não posso falar, eu penso, eu escrevo
[o meu abrigo é o agora],
para que o meu legado conste
nos projetos de vida aleatórios seguintes,
até que as lendas morram
e não marquem os pecados dos seus genes.

 


Jaime Portela