quinta-feira, 28 de março de 2019

Podes pensar que apenas tu [217]



Podes pensar que apenas tu
continuas tristemente incomodado
e que, na insana pátria
que te esbulha e troca as voltas,
o travo amargo na garganta te magoa.

Podes pensar que apenas tu
és um brilho na penumbra fustigado
e que, nas vinte e quatro horas que te mirram,
cada minuto é uma ordem
para escorraçar os que te esmagam.

Podes pensar que apenas tu
és andorinha de esperança migratória
e que, dado o vagar do fogo finalmente a crepitar,
cada medida que te explora
é mais uma acha lançada para a fogueira.

Podes pensar que apenas tu és sofredor,
mas olha à tua volta
que verás milhões de espoliados
a espumar na lividez que os amordaça
com o basta que se esfuma acobardado.


© Jaime Portela, Março de 2019



*** Poema inspirado nos tempos em que quase não havia greves (Troika/Passos Coelho/Cristas/Gaspar/etc.)***

quinta-feira, 21 de março de 2019

Naquela tarde [216]



Naquela tarde,
todos os pássaros aguardaram,
pousados,
à espera de um sinal dos teus olhos.
E até o bulício do mar se encolheu
quando as flores se tornaram mais vivas
ao sol do ar que parou.
Os mais avisados,
cismaram no prenúncio de tempestade
e eu, desavisado, parei de respirar.
Naquela tarde,
os teus olhos disseram que sim.
Os pássaros voaram de novo
e o mar voltou a enrolar-se, afirmativo.
Respirei,
era o nosso tempestivo começar.



© Jaime Portela, Março de 2019


quinta-feira, 14 de março de 2019

Não acredito em profetas [215]



Não acredito em profetas,
da fortuna ou da desgraça,
e nos céus e infernos do futuro
que me apontaram outrora.

Não acredito no impossível
e no fim do mal pelo bem
sem espinhos sangrentos
que rasguem fundo a carne.

Mas acredito em tudo
o que é imortal num momento
e em amores, mesmo absurdos,
encontrados com a bênção do  luar.

E piamente acredito
que só o saber de bom uso,
sabiamente abraçado à honestidade,
nos fará, sem receio, acreditar.


© Jaime Portela, Março de 2019


quinta-feira, 7 de março de 2019

Poema de um avô babado [214]



Tens no olhar
a flor do verde pinho inteligente
e a mãe da cobiça
na beleza de Afrodite.
No teu andar,
a crescer mas ainda miudinho,
vejo a guitarra
que no meu colo nina
e a vespa sem ferrão
de cintura em duas mãos.
Ouço o anjo de sorriso divinal
no teu falar
e em cada aprendizagem soletrada
há uma carícia embebida.
E há, nos teus gestos de menina,
beijos de harpas dengosas
que me desgrenham
o ser e a razão.
Agora, contigo, nada mais vejo.


© Jaime Portela, Março de 2019