quinta-feira, 30 de abril de 2020

Subimos [274]



Subimos. Os degraus,
à medida que os pés os deixavam,
partiam-se.  Arcámos o peso
do regresso no transpor do parapeito,
definitivo na pilha de paus para trás.
A escada, construída por nós,
desconjuntou a noite.
Como saída única, eu e tu nos gonzos.
Eu, como tu, um olhar às escuras aceso
nas palavras. De mãos geladas lá fora,
atirei-me para cima, já dentro,
no calor do balão insuflado.
Tu, um peixe fora da água.
Multipliquei os teus suspiros nos meus.
Caímos num chão sem volta
às mãos do coração. De ambos,
a marchar em disparos, soldados.


© Jaime Portela, Abril de 2020


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Estranha adolescência [273]



Quando nem sabia que existias
[por sentir que um amor
não impedia outros amores,
como quem adora deuses e santos]
eu pensava, adolescente e polígamo,
que amava todas as mulheres.

Agora [que te conheço]
não quero mais nenhuma,
mas tenho a mesma espera inquieta
para que desfrute
dos pecados empinados nos teus seios,
para que os meus lábios
toquem a graça que lavra nos relevos
entufados pela virtude das palavras
[quase mudas] do desejo vezes dois.

Agora, só penso em provar
a semente do incêndio que grassa
entalado nos teus passos
e percorrer [com mãos polígamas]
o teu corpo espelhado no meu,
enquanto respiramos no vácuo
o mundo que esvaziamos
nesta estranha adolescência.


© Jaime Portela, Abril de 2020


quinta-feira, 16 de abril de 2020

A porta a consentir a chave [272]




A porta a consentir a chave
que no tapete floria.
O umbral, prazenteiro,
a recolher o meu peito escancarado
pela saudade, pelo desejo.

A luz, enrolada em gestos
de caracóis preguiçosos,
a bocejar no amanhecer do sono breve
sem tempo de alisar
as rugas da tua insónia.

As minhas mãos,
com vontade de bordar emoções
na tua camisa de dormir
ainda sem cicatrizes do corpo,
a preferirem o toque do teu espertar.

O beijo de bom dia
a esvaziar o silêncio da noite,
a encher o dia com sussurros de nós.
A tua chave e a tua luz
num bordado bem dentro de mim.


© Jaime Portela, Abril de 2020


quinta-feira, 9 de abril de 2020

A praia dos sentidos [271]




Cresceste em mim,
brisa suave que não vergava a indecisão
a embargar a voz,
a esculpir com mão ignorada
uma pergunta, um espaço
à procura de espaço entre prisões.

No embaraço, passeámos ignorantes
em palavras de sinais impercetíveis
pintalgados de nós,
que nos envolviam no gesto involuntário
de aprendiz, a submeter-nos legítimos
com as nossas próprias teias.

Perplexos, despertámos
num céu-aberto ao desejo encarnado
[enevoado por cegueiras falsas,
a rirem-se do falho ensaio de vendas]
e mergulhámos, sem o achar,
na água doce da praia dos sentidos.


© Jaime Portela, Abril de 2020


quinta-feira, 2 de abril de 2020

O verdadeiro poema [270]




O verdadeiro poema
não voa pela vida, mas acima dela.
É um incerto deambular que atira
as imagens ao ar ainda não respirado
e as ata,
em braçados de palavras redondas,
no horizonte da retina de cada olhar.

O verdadeiro poema
conduz mais vozes de fora para dentro
que o inverso.
É um filme ao contrário onde a bala,
que não é disparada
pela espingarda do poeta,
atinge o leitor ao carregar no gatilho.

Mas, se o horizonte é pequeno,
não há ricochete e o verdadeiro poema
morre por fuzilamento.


© Jaime Portela, Abril de 2020