quinta-feira, 28 de abril de 2022

Pássaros altruístas [396]

 


À margem dos sentidos que as mantêm cativas,
trago comigo palavras que me querem decifrar,

que lutam entre si

para me dividir indignamente
e devassar esconderijos que desconheço.
Destes pássaros altruístas,

que cantam ao sol continuamente de graça,
não fujo nem me salvo,
porque entre eles e eu há uma certeza cravada
que se arruína mal se constrói à deriva do não dito,
naufragando sem rumo  nas brumas do sentido.
Apesar disso, em fila indiana,
o rebanho silvestre das palavras vai sendo riscado
em poemas vivos de pássaros

que se constroem pousados nas linhas,
na mira dos contornos de um confuso retrato
que mesmo impreciso descubram.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


segunda-feira, 25 de abril de 2022

Na solidão [395]

 


Na solidão,

ouvimos o silêncio infiltrado na voz.

Procuramos um e outro amigo,

mas eles nem sempre têm guitarras

com as cordas no tom do nosso fado.

Então, mendigamos cores

para pintarmos o fogo

que nos falta dedicar

ao vento de assobios quentes.

Na solidão,

vemos a ausência furada nos olhos.

Abrimos a boca nua de palavras

mas nem sempre acode um vizinho

para nos dar o braço que alumie.

Então, imploramos por cravos vermelhos

para tirarmos as mãos tristes da testa

e acenarmos ao que nos foge sem freio.

Na solidão,
não é de luz a liberdade de Abril.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


quinta-feira, 21 de abril de 2022

Palavras mutiladas [394]

 


Se o que eu digo fosse arte,
não seria de censura
o nó que me confina a liberdade.

Nem sentiria
a ardência do vinagre
nas feridas abertas da ausência.

A luz,
que me fere como um laser,
teima em cortar
a audácia dos meus dedos.

E saem de espinhos
encravados na garganta
as palavras mutiladas que sufoco
e que não ouves.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Da tua nobreza [393]

 


Da tua nobreza, na invencível candura
que dentro me inspira sujeito,
respiro os mil e um devaneios
em sonhos que o senso frágil não doma.

Vejo os teus cantos pelos recantos
do corpo em sobressalto
e sinto, na alma, a convulsão da entrega
semeada na palma da voz.

Do verbo, que seduzo demiurgo,
és o cetim sensual desta ímpar labuta
no tear de amanhar os sentidos.

Persista o tempo do encanto,
que não o penhor da rotina,
e seremos [e]ternamente [in]esperados.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


quinta-feira, 14 de abril de 2022

Entrei [392]

 


Entrei
e peguei nas tuas mãos,
porque as vi,
ora paradas ora agitadas
dentro de ti,
enquanto tremias fechada
com os olhos postos na bússola
que sentias desgovernada,
qual agulha magnética
no Triângulo das Bermudas.
Detiveste-me
sem perceberes que a alma se alimenta
de todos os bocados de tudo
e que eu, de rei e de príncipe,
apenas tenho a espada da palavra.
Continuaste a apaziguar
as sombras do ser com o estar
[num andar organizado
em prateleiras remoídas de querer]
por caminhos de pressupostos
nem sempre claros.
Sairei para ficar ao pé de ti
quando perceberes que do caos
[que é tudo]
se pode perseguir

a utopia do futuro organizado,

que não existe.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Eros e Tânatos [391]

 


Sei que tens uma nascente de luz,
uma chama que te guia no desejo

de chegar ao estuário

onde podemos desaguar abraços

que nos abriguem.
Sabes que luto para transpor
a fúria das ondas na rebentação
e ser o advento, subversivo,
que impeça o desígnio
de à deriva naufragarmos.
Só não sabemos da defesa
à espada fria do tempo,
que nos formiga

o sopro à flor dos lábios,
e se há terra firme sob o lodo
para as nossas estacas.
Não somos de ferro
nem temos as entranhas de bronze.
Ainda assim, resistimos

e persistimos às ordens de Eros,
até que Tânatos nos separe.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Ditadores e oligarcas [390]

 

Usuários da palavra enganadora,
num lavor aturado

com o bisturi do sindicato dourado

de um sistema pecunioso e domado,
as suas marionetas bem pagas

fazem surf na tábua rasa

dos valores da humanidade.
Atiram símbolos [poeira]

para os olhos dos incautos

que de boa fé os sentaram no poder,
pintando a guerra com legumes

de aspeto apetitoso,
para que o rebanho, na vertigem

da propaganda, não acredite nos piolhos.
O povo acordará,

tarde e a más horas,

mas só após tirar o coelho da cartola

do fartar vilanagem e,

da próspera nação,

vir que não há coelho nenhum

e que quase todos os valores

dormem estrangeiros

na máfia da oligarquia investidora

dos olimpos fiscais que os branqueiam.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Paladino e feudatário [389]

 


Neste delírio, que me queima,
reciclo as tuas imagens com a inalação

de drogado no perfume que derramas
entre as fibras do meu sonho.
És a lava de uma praia,

és areia incandescente

que eu beijo feito mar em fumarolas,
envolvendo e entranhando
cada poro do teu ser.
De tão nua,

és a princesa que se embrulha

na devassa da loucura que em mim lavra,
porque visto a beleza

dessa alma que me espreita libertária
e escondo essa nudez de sortes feita
a embelezar a tua fronte,
à qual me rendo paladino e feudatário.

 

© Jaime Portela, Abril de 2022