quinta-feira, 28 de julho de 2022

O tempo mede-se a partir de ti [422]

 


É no teu âmago que batem as horas
que nos arrastam ao recomeço,
samba inadiável nas artérias

do fuso difuso das emoções.
Os dias
contam-se pela fermentação do mosto,
adormecido,
até que o álcool ruborize as nossas bocas,
destilando bebidas seminuas,
imagens a dançar
coladas ao odor do nosso orvalho.
Nesse tempo de choco,

pouso ave inebriada nos teus seios
ao ritmo a que me adotas
no teu corpo,
ao compasso do começo sem ponteiros
a germinar no teu rosto.
Revolvemos
a terra e o ar da hora desmedida,
onde os ventos sem lama se derramam

nas unhas que se apegam à carne,
em fogo.
O nosso tempo só é cadáver
quando as nossas bocas, cansadas,
deixam de se alimentar

das estrelas da carne.
É o alarme para darmos corda

ao relógio do nosso silêncio,
o tempo de nos alvoroçarmos
para voltar ao recomeço.
O tempo mede-se a partir de ti.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


segunda-feira, 25 de julho de 2022

Sou um inseto [421]

 


Observador,
agarro o meu queixo
para iluminar
a verdade no teu rosto.

E sinto que viajo
em círculos, na tua esfera,
atraído pela voz centrípeta
do teu cheiro.

Sou animal articulado,
ando em seis patas,
respiro por traqueias
e tenho metamorfoses.

Cego, sou um inseto
à volta da luz chamativa
que cintila nos teus olhos.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Diz-me [420]

 


Diz-me,
esboça nos lábios uma sílaba muda
de humana hesitação
que eu saberei ler os teus sinais.
Franqueia-me
as tuas verdades eternas,
pousadas em alicerces de realidade
ou assentes em areias de volúvel incerteza.

Diz-me,
esboça a ilusão da fantasia,
no limbo por onde erras
ou no redil cercado de lobos que evitas
em dias de sóbria embriaguez,
sem que as gargalhadas
alarmem a virtude do teu ser,
essa força dispersa que por vezes
te sacrifica o cordeiro feliz
no altar da fraqueza.

Diz-me,
esboça o teu ser entre o preto e o branco,
num crescendo de cores
sem espetros de céu e de inferno,
sem levantar muros
ao bálsamo da madrugada,
e foge do veneno das trevas,
mosto das mil cepas que moldam o vinho
que produzes e bebes.

Diz-me.
Não sou eu, és tu que tens de ouvir.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Não é fácil [419]

 


Não é fácil dizer-vos por palavras
o que o som agudo sibilante

acrescentou ao castigo das luzes,
à paralisia na dor por conjetura
que escorria debulhada na babugem
da caricatura da minha retorcida língua.
Talvez eu tenha sido
um calado barítono de opereta
açaimado por uma orquestra barroca
de alicates e agulhas dançantes,
ao ritmo desconchavado das pernas
de um tango esbugalhado.
Senti-me um filho da guerra
banhado em sangue,
vítima inocente com cara de imbecil
a ver as estrelas que, sem clemência,
me atormentavam a alma
enquanto era perfurado sem poesia.

Não é fácil,
não é nada fácil dizer-vos por palavras
quanto custou retirar o tártaro

da bárbara pedreira dos meus dentes…

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


quinta-feira, 14 de julho de 2022

Fico aqui [418]

 


Fico aqui a beijar o teu olhar,
que relembro envolto em brumas,
antes que o véu sombrio do inverno
confunda a memória da chama
que te alumia e resiste por dentro.
Fico aqui a estreitar-te pela cintura,
que ainda sinto

se recordo bolinares de afoitadas naus,

guinadas festivas de mar revolto

sem ferros nem freios,
de lemes brancos em bandeira.
Fico aqui a olhar o teu sorriso,
que me ofereceste

num rendilhado de promessas esmaltadas,
à boca de emoções desgovernadas
pelos nossos gestos em hálitos de sol.
Fico aqui à tua espera,

porque sei,
pássaro de fogo do cinzento despido,
que chegarás de feitiço no olhar,
vestida pelo fio, já não frio, do sorriso,
chama no espaço da luz que nos foge.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


segunda-feira, 11 de julho de 2022

Génese [417]

 


Perto do revés e da lama,
infiltrado no orvalho que a noite purifica,
penduro-me na árvore do silêncio,
onde me abrigo na procura,
agora surda-muda, do brilho das ideias.

Caminho, entre o nada e o quase,
com a mesma luz
de uma candeia tremente, à distância,
como se no propósito analítico
nada mais se inventasse
que o inquinado intento de escorraçar
e varrer cada fruto deste moribundo alento.

Ainda assim, consigo ver
o instinto do chamamento virgem,
a fonte que dá corpo à utopia

do emudecer agoiros de gatos pretos.

E a balada cresce, finalmente,
da predição autêntica,
revelação que se distingue, timbrada,
no berço claro do canto em gestação.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


quinta-feira, 7 de julho de 2022

Procuro a tua rosa [416]

 


Da floresta, em pranto,
sou atordoado pelo aroma
azedo que escorre da chuva,
de espessa corpulência
e de pardas aguarelas.

Ténue, no seu amarfanhado perfil
perante o pássaro
de penas cinzentas que sou,
o sol que me bate é estéril
e a dor que em mim se espoja
ri-se do encanto
do rio de luz que te banha.

Procuro a tua rosa e afogo,
qual desafogo, cada espinho
cravado na babilónia indecisa
deste amor por nós tão tresmalhado,
porque em fogo extinto

as nossas almas se debruam

reciprocamente metafónicas.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022


segunda-feira, 4 de julho de 2022

A musa do meu castelo [415]



De atalaia,
qual guarda de castelo impenetrável,
adormeci e deixei-te passar,
desprevenido, pela ponte levadiça.
Invicta, entraste gloriosa
por entre as armas do portão
da minha alma amuralhada.
Célere,
retirei os ramos de oliveira das ameias,
forrei de frieza as paredes e deixei escorrer
um fleumático relento na palavra.
Ainda não seguro,
arranjei um tapete de madrigais incorruptíveis
e deitei-me na geada formal da madrugada.
Demasiado tarde, porque o amor impossível
é tão fiável como o nunca.
Em menos de uma batalha
eras a régia soberana e, inspiradora,
a musa do meu castelo submisso.
Agora, em fogo vivo, as palavras ardem
sem compaixão, uma por uma, com paixão.

 

© Jaime Portela, Julho de 2022