quinta-feira, 28 de abril de 2016

Atiro no primeiro que falar [067]


 

Entro armado no palco e grito:
- Atiro no primeiro que falar.
Faz-se silêncio. As luzes acordam,
encarniçam-se e procuram o homicida
na minha fronte de amante suicida.
Declaro-me, exponho-me, mostro-me.
Não me defendo, estou inocente
mas lanço granadas de fumo.
O drama e a trama, sem ponto,
são metáforas polimorfas esboçadas
à luz de espelhos curvos da memória.
Ela entra em cena,
duplicada de mel e fel suplicantes:
- Faz-me tua… ou MATA-ME…!
Acaricio as suas formosuras, trapos vivos
atados ao anzol para engodar peixes famintos,
levanto a pele de um fruto proibido
e devoro a polpa até ao tutano.
Ouvem-se rumores…
- Atiro no primeiro que falar.
Faz-se silêncio de novo. Ela fica com aquele
olhar cortejado, diria maroto, de um qualquer
filme mudo de animatógrafo obsoleto,
que é apenas o olhar simples e intrincado
de mulher desarmada, que tanto irrita
outras mulheres por saberem que esse olhar
perturba espectadores-homens, de olhos,
mãos e nariz insolentes,
habituados a avaliar os melões apenas pela casca.
A serpente, já entorpecida, agora num
êxtase melancólico de leoa empanturrada:
- Faz-me tua… ou mata-me…!
E eu, todo nu, sem deixa que me valha:
- Atiro no primeiro que falar.
O pano cai de repente. Na plateia
morrem olhos a procurar uma serpente.
 
Jaime Portela

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Uma rosa moribunda [066]


 

Uma rosa moribunda
na alegre palidez de ventos tristes,
com gestos de mariposa a procurar o sol
no reverso de um tempo já serôdio
em labirintos nocturnos de memórias.
Um girassol impreciso
nos pregões de engodos para o abismo,
a dissecar, no pino do estio das palavras,
mil pegadas de contornos fátuos
que no areal a cada vaga definham.
Mareante profana,
felina, de abordagem temerária
às naus que abalroa arrebatada, é enganada
por contrastes de tesouros sem quilates,
corsária saudosa
do seu próprio espólio já morto.
Numa procura com penas de pavão,
certa de mais um achado,
mas atraída pela brisa diversa,
numa clara cegueira de luz redundante
e impelida pelo calor falacioso
que emana do instinto predador,
tomba seduzida
por jóias que pensava verdadeiras.
Dessas pilhagens,
onde luzem todas as memórias sem passado,
deveriam nascer anjos verdes
com almas brancas de açucenas,
que viveriam cegos e certos
na febre faminta de abraços,
fundindo sinais, partilhando tesouros,
morrendo de amor e paixão.
Mas nada disso acontece,
porque, afinal, é uma rosa sem luz,
rosa falaciosa que eu não beijo,
mesmo sem espinhos,
sedutora e de boca orvalhada pelo desejo.
 
Jaime Portela
 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Bebo a seiva e o mel da tua dança [065]




Bebo a seiva e o mel da tua dança,
pantera sedutora a rasgar a selva
do nada que nos separa,
enquanto orquestro o silêncio
[ou a ânsia]
ao ritmo da tua valsa.
 
Embriago-me
no ventre da tua voz acesa,
melodia sensual a invadir-me em clarins
os tímpanos do desejo,
enquanto vestimos o tempo
com relógios sem ponteiros.
 
Sobrevoamo-nos cativos
e caímos no vácuo entrelaçados,
latejantes.
Detonamo-nos num fogo-de-artifício
de estrelas cadentes, ofegantes.
 
 
Jaime Portela

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Com a razão [064]

 

Com a razão,
abraçamos cores do universo
aos nossos olhos fronteiro,
contagiados pelos ecos das vivências
no âmago do pensar recicladas.
Com a vontade,
descobrimos os sinais da pele
às mãos arredios,
que vamos vestindo
nos quereres dos arbítrios
em coretos de gosto rimados.
Com a emoção,
enlevamos os desejos à mente colados,
vividos no palato dos sentidos
em puros-sangues montados.
É na razão [ou fora dela]
que abrigamos o banquete das ideias,
a vibrar à cadência da vontade
na ribalta dos sonhos
que a emoção lustra e nos ilustra.
 
Jaime Portela