quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Navegar é preciso * [082]


 

Vimos de longe, de muito longe,
com as mentes perfumadas pelos dilúvios
que sorvemos com o hálito na pele,
abençoados por fragrâncias
de maresias que nos alimentaram
em rotas de ventos risonhos.
 
Vimos de longe, de muito longe,
a bordo de uma nau
com a linha de água submersa pela carga
dos contentores da fortuna
estivada nos porões, tesouro que carregámos
com as retinas cheias de nós.
 
Vimos de longe, de muito longe,
com limo e ostras na rabada
de cruzar um mar convulso de vozes
e algas sem norte na quilha da nossa firmeza,
à vela de um farol
lastrado na paz dos sentidos do olhar.
 
Vamos p’ra longe, p’ra muito longe,
a navegar no fado em que nós cremos,
dobraremos os cabos
das tormentas de nós mesmos.
* Título de um poema de Fernando Pessoa
 
Jaime Portela

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A seiva que nos percorre [081]


 

Imprimes, na tua pele,
o pranto que leve se afoga na claridade
embriagada às nossas mãos concubinas,
porque não sabemos escrever
cantos de pétalas caídas na areia.
 
Sobre os teus muros,
derramas uma chuva de lágrimas
que se apagam no sol em que ardemos,
porque transborda no teu olhar
o verde transparente
de grinaldas em claros desejos costuradas.
 
Com sombras, moldas o rodapé do teu sonho
[porventura animada por chapéus de dois bicos],
mas logo sublimadas na luz dos beijos
que ainda não demos,
porque despimos qualquer mágoa verdadeira
que, derrotada, se torna moribunda.
 
Porque a seiva que nos percorre
é vinho destilado,
já que o nosso delito arde
num cadinho de cinza, justa e fecunda.
 
Jaime Portela