quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Há quem viva o amor [095]




Há quem viva o amor
perdido numa rosa negra, cruel,
e tenha as lágrimas fixas
nas pétalas de uma dor que se alimenta
de qualquer nuvem que passe.
Outros há que o possuem enfeitado
com harpas ditosas
em toda a palavra que voe
por mais sem asas que esteja,
temendo promessas embrulhadas
num presente sempre envenenado.
E há quem sinta o amor
como peça montada
na engrenagem da posse visceral,
sofrendo [e fazendo sofrer]
com a dor do silêncio ou do ruído violento
de palavras sem retorno,
com a ausência do sol à meia-noite
no relógio de bolso
ou com o medo que lhe seja mostrado
o não sem luz na imensidade das horas.
Mas amar só por amar, como dar
sem estar à espera de mais tarde receber,
é amar despido de pesares eternamente,
é beijar rosas sem espinhos, e dormir
como criança sem revés que a atormente.


Jaime Portela


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Dando graças não sei a quê [094]

 


É no caminho que se rasgam teias,
mas onde também se consomem asas
numa selva gorda em ruídos
e magra em primores de silêncios.
A consistência dos passos que precisamos,
pode ser imprecisa,
mas é indispensável na amálgama
de cruzadas em rotas de sincronia aparente.
O peso da vontade é a resultante
quase sempre proporcional à força
da importância que a sua essência confere,
mas a espera da comunhão
com outros passos errantes
é palha seca de acenos que arde
se não a humedecemos com sonhos.
Há temor e desejo pela curva cega da estrada,
mesmo sabendo da incerteza posterior,
como fado de uma pátria
que se procura perdendo-se
em labirintos de vinho de castas perversas
e em populismos feitos a martelo
que muitos bebem na raça.
Deveria sentir medo, ou até pânico,
mas rio quando me vejo ao espelho
a congeminar palavrões,
dando graças não sei a quê.
                                    
Jaime Portela

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O tempo em que te olho é sempre estreito [093]


 

Na imagem que eu trago comigo,
vejo-te nos madrigais
com que decoro as tuas coxas roliças
invadidas por sóis
que me pintam iluminações natalícias,
sempre acesas nos teus lábios
com sorrisos de hortelã.
Vejo-te de olhos imensos, feéricos,
abarcados por dez mãos
[uma mão em cada dedo, os meus]
que afagam os aromas no mar dos teus cabelos
que hão-de parecer de sereia.
Mas,
na imagem que eu trago comigo,
és tão fugaz… és uma estrelinha cadente,
um bocadinho de sol que quase não vejo,
que nem me dá tempo de um beijo.
Vejo-te, quase sem te ver,
como ave migratória que se dissipa na bruma,
perdida em menos de um gesto
mal cai a cerração num ponto de mira distante.
Maria, o tempo em que te olho é sempre estreito,
inventemos horas mais largas,
mais intensas que o fulgor do teu olhar,
para melhor te mimar.
 
 
PS: dedicado à minha neta Maria
                                    
Jaime Portela

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Madrugadas de pétalas marinhas [092]


 

Daqui,
donde te chamo,
vejo a nau que parte do teu mar
à procura do meu porto.
No porão, transportas uvas…
À chegada, do mosto fermentado,
destilará vinho tinto de paixão,
que em fogo espalharás na minha pele
sequiosa do teu álcool.
Espero-te na praia
onde encalham marujos sem perícia,
onde sucumbem toscos barcos de papel
na demanda de utopias,
mas onde aportarás com a graça
de um estandarte desfraldado
na abordagem ao cais desta espera
que de tanta me enlouquece.
Chamo-te…
Espero-te…
Quero destapar a espuma quente
e beber, ainda doces,
as ondas de vinho do teu ventre
em madrugadas de pétalas marinhas.
                                    
Jaime Portela