quinta-feira, 28 de setembro de 2017

De amor nunca mais te falarei [139]




De amor
nunca mais te falarei.
Reneguei as minhas mãos
loucas da posse
e, dos meus olhos,
deportei gestos de entrega.
Porque a força que me empurra
é a mesma que me cega.

De amor
nunca mais te falarei.
Nem um passo
terá chão pisado no calar
e, dos meus beijos,
extingui a cor que destrói.
Porque o gosto que me aquece
é o mesmo que me dói.

Por que só me dizes vai
se os teus olhos o desdizem?
Só volto a falar-te de amor
se conseguires que retire
estes punhais enterrados
na carne viva do peito,
de tanto amor arruinado,
amarrotado e desfeito.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O pôr-do-sol rubro e cálido [138]




O pôr-do-sol rubro e cálido
a querer incinerar as lágrimas
que a chegada instila na garganta.
O cabelo solto de areia a viajar
atado no embaraço de lençóis
à espera de nós enlaçados.
A chama a dançar trémula
até que a voracidade da pele
aviste a rebelião das estrelas.
As pernas boquiabertas
a sufocarem o silêncio
e a adelgaçarem as unhas despidas
nas costas transpiradas.
O navio a repetir o grito inquieto
do farol à entrada do teu porto,
sem brumas, sem nevoeiros.
O vazio calcetado de tédio
a desmantelar-se ao sabor
do gozo renovado das marés.
Na garganta, o rouco sim,
a tresmalhar-se pela boca
entreaberta e perdida.
Na fronte, as rugas da recusa
âs cicatrizes perpétuas
da tortura inevitável da partida.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Do teu peito ainda partido [137]




Do teu peito ainda partido,
restaurado pela seiva
de beijos concertados,
sopros balsâmicos que te despertaram
do sonho já esgotado,
brotaram rosas naturais.

Das tuas mãos, ainda trémulas,
determinadas a espantar as nuvens
e a acordar a modorra
do fim de tarde que te acomete
como um apelo sem vida,
desabrocharam carícias verdadeiras.

Gosto de ti,
pelas rosas que amotinam o teu peito
e pelas mãos de luz arrebatadas
que em noites de sol partilhamos.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Epopeias [136]




Muito antes do tempo que hoje é o nosso,
as naus fizeram-se ao largo, temerárias,
por caminhos dúbios à descoberta,
iluminadas pelo sextante das estrelas
de um céu de azul nem sempre forrado.

Foram os tempos dos vírus, dos piratas,
da peste, da malária e do escorbuto,
na procela de façanhas
armadas à força e à vela de fidalgos
a navegar sem remorsos,
a cavalo e a bordo da servidão infligida
no carcomido corpo de escravos.

Por toda a parte mais tarde conhecida,
eis que uma nova epopeia se levanta
num corrupio ainda mais dominador,
onde a distância se condensa
e astrolábios e bússolas são inúteis
nos avisos virtuais aos navegantes:
“- Introduza o seu nome e a sua senha”.

Frotas de todo o mundo, em liberdade,
a partilhar o mesmo mar sem fim à vista,
miríades de embarcações embandeiradas
na imensidão de toda a cor e toda a raça
na arte e no engenho do ver e do mostrar,
ainda que haja em cada rota
um Adamastor ou um pirata acantonado
a espalhar o vírus das tormentas.

Com espantos sempre novos, desusados,
a reinventar o fogo-de-santelmo remoçado,
é nos porões de uma aldeia infinita e global,
depois do imperativo
“- Introduza o seu nome e a sua senha”,
que são carregadas todas as vontades
em diluviana profusão de navegantes.

Mas sem ventos de feição,
tudo é silenciado e naufragamos sem velas
que nos façam bolinar:
 “- A senha que introduziu está incorreta.
Digite a sua senha novamente”.



Jaime Portela