quinta-feira, 26 de julho de 2018

Foge de mim [182]




Nunca mais quero ver
a tua cegueira
bem maior que a de um cego.
Foge para o além da tua carne marcada
de recortes sedentos,
veste armaduras
para que as minhas mãos tropecem
e não avassalem espaços
destroçando os teus segredos.
Arranja fortalezas só tuas
de azimutes verdadeiros,
onde a fogueira não morda as ameias
da derradeira gota de paradoxos.
Rebenta em flores de pétalas e asas
e voa em archotes de verdade,
porque a tentação
é a árvore mais alta da serra.
Foge de mim
para que não me perca loucamente
na demência da tua carne
e me embriague
no sonho da terra fértil e pronta
do teu poema feito mulher.



© Jaime Portela, Julho de 2018


quinta-feira, 19 de julho de 2018

Versos na areia [181]




A noite
é uma lua diurna sem chama.
O meu rio
é um mar de estrelas sem praia.
O silêncio
é um remanso sem rua de palavras.
A nova que se renova,
mas não mostra a outra face.
No chão,
vejo-a nua na distância
do seu véu de luz usual.
A noite ofega
e a lua nega-se cheia, sem ânsia.
O mar, com tanto isco,
mareia sem moliços no papel.
As estrelas, já orvalhadas,
dançam na rua feia sem nada.
Corro o risco, mas arrisco,
risco estes versos na areia.



© Jaime Portela, Julho de 2018


quinta-feira, 12 de julho de 2018

Não quero miradouros [180]




Não quero miradouros
para vertentes de passados
nem quimeras opacas
de horizontes sitiados.
Prefiro mãos-cheias de acenos,
de rumos
com impulsos urgentes.
Não me entregarei em feitiços
adornados com verbos perecidos
ou mascarados de risos contentes.
Quero alento
inundado de futuro,
incerto mas verdadeiro,
ávido de ímpetos de vento,
com fantasias de mar
e asas de liberdade.
Quero respirar o meu sopro
em gritos com fôlego,
pleno da ousadia inaugural
e do recomeço permanente
mas nunca igual.


© Jaime Portela, Julho de 2018


quinta-feira, 5 de julho de 2018

Somente [179]



Somente o peso do dever
arrisca estrangular
a vaga libertária que há em ti,
indecisa.
É a nudez da leveza que te seduz
na procura de traições
numa rotina de caprichos redutores
vestidos de fogo
em ombros despidos,
na razão esmagada pelo prazer
como alguém sufocado pelo vício.
Esgravatas equilíbrios
que desvendas na deusa
e na prostituta que há dentro de ti,
na existência amealhada
em inventários impossíveis,
na procura de essências que viveste,
sem as viveres,
para saberes viver como sabes.
Ou então, minha amiga,
sabes, sentes e vives,
e eu é que estou estrangulado,
corrompido ou viciado na existência
de prostitutas e deusas.


© Jaime Portela, Julho de 2018