quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O meu cão [184]



Despiste as vestes do passado
para trajar o futuro da vontade fugaz.
Ficaste assexuada
no vazio de emoções quando a paixão
já não te rasgava as entranhas.

Sangraste, exauriste até à gota derradeira
a tua seiva aturdida
na transfusão ininterrupta de caminhos
cada vez mais destroçados.

Emudeceste, ensurdeceste,
para que os nossos tímpanos
continuassem virgens ao engenho das palavras.

Trocaste a tua pele de tatuagens genuínas
pela aparência maquilhada
de uma boneca de pilhas.

Abandonaste braços, mãos, pernas e olhos
para que eu não algemasse a tua fuga para a cegueira.

Amputaste neurónios, pensamentos e verdades
no desassossego de madrugadas vazias de sentido.

Atiraste para a lixeira
o que restava do teu corpo enlouquecido,
sem perceberes que a sua reciclagem era impossível.

Suicidaste-te para que nada mais te pedisse.
Enterrei-te, bem fundo,
a cadeado no meu paiol da indiferença,
para que o meu cão não te desenterrasse
e morresse envenenado
ao trazer-te de novo para mim.

Enterrei-me
à mesma profundidade que tu, a teu lado,
morri envenenado ao enganar o meu cão
quando voltaste para mim.

 



© Jaime Portela, Agosto de 2018


41 comentários:

  1. Poesia, boa poesia, não é só aquela enfeitada de palavras bonitas e declarações de amor. A poesia também pode ser dor, raiva, alucinação, desespero, abandono... e será tanto melhor e única se tiver a capacidade de nos chocar e de mexer connosco.
    Foi o caso desta!

    Beijinhos de regresso
    (^^)

    ResponderEliminar
  2. Apesar de diferente, é muito emocional. Parabéns.

    Hoje: Adormeci num sonho de ternura

    Bjos
    Votos de uma óptima Quinta-Feira

    ResponderEliminar
  3. Wow! Mas que belo!! Amei!

    Beijos e um dia feliz!

    ResponderEliminar
  4. Boa tarde, Jaime!
    Nossa que intensidade no poetar e que verdades nos versos contidos.
    Que isso não nos ocorra de forma alguma!
    Hoje, conversava com uma filha do coração sobre um senhor que amou desta forma, coitado!
    Tenha dias felizes e abençoados!
    Abraços fraternais de paz e bem

    ResponderEliminar
  5. Muito boa esta poesia.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

    ResponderEliminar
  6. Suicidaste-te para que nada mais te pedisse.
    Enterrei-te, bem fundo,
    a cadeado no meu paiol da indiferença,
    para que o meu cão não te desenterrasse
    e morresse envenenado
    ao trazer-te de novo para mim.

    Enterrei-me
    à mesma profundidade que tu, a teu lado,
    morri envenenado ao enganar o meu cão
    quando voltaste para mim.

    Este finaal es un completo acierto de ser que habla a corazón abierto.

    Feliz fin de semana. Un abrazo.

    ResponderEliminar
  7. Emoções ao rubro em curioso poema!
    Gostei ... bj

    ResponderEliminar
  8. Profundamente visceral...
    Um abraço, Jaime!

    ResponderEliminar
  9. Reconheço a grande complexidade que aqui está ! Reconheço a grandeza do poema! Reconheço a beleza intrínseca das palavras cuidadosamente utilizadas. Uma verdadeira mestria, um verdadeiro enigma ! Parabéns !
    Amigo JP, bom fim de semana.
    Beijo

    ResponderEliminar
  10. Um poema triste, sofrido, bastante intenso. Mas sempre majestoso!

    r: Muito obrigada :)
    Igualmente, para si e para os seus*

    ResponderEliminar
  11. Maravilhoso poema meu amigo!
    Adorei como sempre!
    Beijo de paz e bem, felicidades.

    ResponderEliminar
  12. A vida... um eterno puzzle e, sim, quantas vezes, "morremos envenenados"....
    Intenso, poderoso... além de brilhante....
    Obrigada pela visita
    Beijos e abraços
    Marta

    ResponderEliminar
  13. Um poema muito cheio de emoção e intensidade.
    Um bom fim de semana, Jaime.
    Um beijo.

    ResponderEliminar

  14. Uma pessoa "ferida" nem sabe o que fazer!

    A sério.
    Recebi um "recado" de alguém
    que se insurgiu por eu lhe dar a ela,
    como tenho dado a muitas outras o link dos meus blogues
    e, como vejo "outras pessoas fazer"
    não sou a única!

    Mas DÓI, Jaime!
    Dói porque não o faço com segundas intenções.
    Nem o faço todas as semanas nem todos os dias.

    Caramba!
    Será que as pessoas perderam a humildade de aceitar e perdoar
    e reagem logo à bruta?

    Sabes o que te digo?
    na transfusão ininterrupta de caminhos
    cada vez mais destroçados.

    Pegando nas tuas PALAVRAS tão bem escritas
    é como me sinto (destroçada)

    Desculpa o desabafo
    Ando mal e estas "coisas" nada ajudam, beijinho

    ResponderEliminar
  15. Emoções! Muitas emoções! Em um misto de homem e animal. Animalescos somos todos - viventes! Envenenamos e somos envenenados pelo amor afrodisíaco!
    Destaco:
    "... Emudeceste, ensurdeceste,
    para que os nossos tímpanos
    continuassem virgens ao engenho das palavras."
    Abraço.

    ResponderEliminar
  16. Oi Jaime
    Que maravilha de poesia metafórica!
    Uma engenhosa história em forma de poesia
    Amei
    Beijos no coração
    Lua Singular

    ResponderEliminar
  17. Eta inspiração infinita, Jaime,quantos espaços você conquista,quantas margens você ignora e as rompe e quantos novos rios são criados pela genialidade deste seu contorno poético que o transforma num expertise nesta área.
    E você percorre estes meandros da poesia como se estivesse andando para frente e de pé, coisa que nós os seres humanos o fazemos a milhares de anos.
    Lindíssimo!
    Um abração carioca.

    ResponderEliminar
  18. Boa tarde,Jaime,
    seu poema está repleto de ótimas e bem escolhidas metáforas e comparações.
    Encheu-me de pensamentos e precisei fazer várias leituras para entender um pouco de seus versos muito bem construídos, mas na maioria das vezes nos enganamos quando pensamos que podemos compreender as palavras do poeta.
    Excelente! Abraço!

    ResponderEliminar
  19. Forte, numa intensidade original e diferente do estilo habitual por aqui (mais lírico e comedido). Gostei muito.

    Beijinho

    ResponderEliminar
  20. Profundo e sentido poema.
    Maravilhoso!
    Bom fim de semana
    Beijinhos
    Maria
    Divagar Sobre Tudo um Pouco

    ResponderEliminar
  21. Boa noite Jaime. Aqui percebemos um eu lirico, repleto da revolta ocasionada pelo viver amargurado de uma relação. Confesso que li com bastante atenção a revolta do poeta, e digo que soubeste fazer belo, o que lhe era feio à alma . O Poeta escreve tão belo, mesmo em meio ás amarguras. Desejo-lhe um ótimo fim de semana, querido artista. Temos nova postagem por lá. Grande abraço.

    ResponderEliminar
  22. Poesia carregada de duras palavras e pétreas emoções . Não é uma poesia, "é uma granada sem pino" de sentimentos.
    Abraços

    ResponderEliminar
  23. Bom dia Jaime, versos soberbos sobejando lirismo, nem a tristeza contida nos versos foi capaz de apagar a beleza poética.


    Deixo o link da minha singela homenagem aos pais!
    https://afetocolorido.blogspot.com/2018/08/feliz-dia-dos-pais.html

    Bom final semana!

    Abração!

    ResponderEliminar
  24. Intenso, dorido, é quase um Poema de raiva.
    Muito bom, Amigo.


    Abraço
    SOL

    ResponderEliminar
  25. “Despiste as vestes do passado
    para trajar o futuro da vontade fugaz.
    Ficaste assexuada
    no vazio de emoções quando a paixão
    já não te rasgava as entranhas.”
    Jaime, mesmo de férias (do rol) não resisti a buscar encantamento no seu «engenho de palavras».
    “A poesia (a verdadeira poesia) é assim: deixa-se pressentir, anuncia-se no ar, como os terramotos…”, diz Roberto Bolaño no magnífico romance “Os detectives selvagens” .
    Parabéns, meu amigo, grande poema!
    Beijo.

    ResponderEliminar
  26. Bom dia. Poema brilhante. Uma delicia de leitura

    Deixando um abraço

    ResponderEliminar
  27. Este é ácido, corrosivo.
    Aquele abraço, boa semana

    ResponderEliminar
  28. " A ampulheta continua a vazar o tempo " sem que a possamos impedir e, a cada dia lá temos nós de a virar ao contrário para que ela continue a sua função , aquela que lhe foi destinada. E enquanto tivermos força para lidar com ela, uma vez e outra e outra novamente a colocaremos na sua posição. Nesses enretantantos surge-nos de um tudo, amores , alegrias, encontros, desamores, muitos desencontros e um sem número de desilusões, emoções e problemas com os quais temos de lidar e, pior, sem poder voltar atrás e " desenterrar" o que passou. Só temos certo este aqui e este agora e também nos é dada a permissão de pensarmos num futuro, de mantermos a esperança de que o dia seguinte seja melhor, que o amor que se foi volte , totamente " reciclado " para que , com ele, ganhemos novo fôlego para continuar. As vezes, não sei...melhor seria que um amor desses ficasse para sempre enterrado e um novo aparecesse , livre de promessas, vivido plenamente, dia a dia, momento a momento, sem a expectativa de ser para sempre. Ė que não sei se alguma coisa será para sempre, Jaime...
    Será o amor? Algum tipo de amor, sim, é para sempre, mas este que aqui descreves, ...tenho algumas dúvidas. Mas não vale a pena pensar nisso, não vale a pena desenterrar passados e muito menos vale enganar o " teu cão" Vale viver o amor de agora intensamente e deixar que o nosso cão, fiel como ele só, se regozige com a nossa felicidade. O " teu cão, esse nunca te abandonará, mesmo sem te ter prometido que a teu lado sempre estará. Amigo, falaste do teu cão e, embora não tenha um, prefiro falar dele a falar do bicho " homem" e penso que não sou a única; por algum moivo o teu esteve presente neste belo poema. Um beijinho, Jaime e muita saúde, amor e alegria.
    Emilia

    ResponderEliminar
  29. Parabéns pela capacidade de usar as palavras... até parece fácil... mas na realidade não está ao alcance de todos!
    Um abraço...

    Olhar d'Ouro - bLoG
    Olhar d'Ouro - fAcEbOOk

    ResponderEliminar
  30. Muito forte!

    Por vezes envenenamos as relações, matamos e morremos sem darmos por isso.
    Talvez que assim uma chicotada psicológica possa surtir algum efeito... de parte a parte.

    Boa semana, amigo Jaime!

    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  31. Olá Jaime,
    que brutidade intensamente verdadeira !
    é o amor, é a fúria da natureza que não olha a meios para avançar na sua força viva,
    que transmite a vida na dor e na morte
    a tragédia que todos os dias testemunhamos e que por vezes chamamos amor,
    para lhe dar um tom menos assustador ?! sem o qual não podemos viver
    que passa necessariamente pela morte de uns para alimentar a existência dos outros
    sejam eles humanos ou animais
    e aceitamos e nos deitamos ao lado da tragedia para que a vida global se alimente da nossa nudez e do esquecimento que é o nosso destino
    bah !

    é o que eu entendo no encadeamento das suas palavras :)

    abraço

    Angela


    ResponderEliminar
  32. A intensidade do poema , ruborizou- me as palavras . Grande poema, Jaime !
    Abraço caríssimo amigo

    ResponderEliminar
  33. Suicidaste-te para que nada mais te pedisse.
    Enterrei-te, bem fundo,
    a cadeado no meu paiol da indiferença,
    para que o meu cão não te desenterrasse
    e morresse envenenado
    ao trazer-te de novo para mim.

    Belo e muito forte Jaime. Gostei bastante.

    Abraços,

    Furtado

    ResponderEliminar
  34. Querido amigo Jaime, que intensidade, que força, que revolta de um coração tão bem composta neste poema; magnifico!
    Adorei esta forma lindíssima de mostrar a alma "envenenada". Que mestria, que força e, em simultâneo, que beleza "bruta".

    Beijo de luar, meu amigo.

    ResponderEliminar
  35. Adoro quando te leio e fico a pensar no que tão bem escreves e descreves.
    Maravilhoso.
    Beijo de...
    Saudade

    ResponderEliminar

  36. Conhecer seu blog foi
    uma satisfação enorme!
    Está de parabéns pelo blog!
    Espero por sua visita em meu blog também.
    https://www.robsonpensador.blog.br

    ResponderEliminar
  37. *******************************************************************************
    Caros amigos, obrigado pelos vossos comentários. Voltem sempre.
    Entretanto, acabei de publicar um novo poema. Espero que gostem.
    Continuação de boa semana. E boas férias, se for o caso.
    Saudações poéticas.
    *******************************************************************************

    ResponderEliminar
  38. Um poema de uma profundidade incrível, Jaime!...
    Veio-me à ideia, o livro e o filme... "O diário da nossa paixão"
    Ele lia-lhe todos os dias... a história da sua vida, em comum... para que ela não o considerasse um estranho... depois da sua doença ter apagado aos poucos, todas as memórias, e emoções... no final... morreram de mãos dadas... continuariam juntos... de alguma forma... em algum outro lugar...
    Magnifico trabalho! Muitos parabéns, Jaime! Adorei cada palavra!...
    Um beijinho grande! Até breve!...
    Ana

    ResponderEliminar
  39. O Poeta pintou, pintou de cores pesadas, encharcado de desilusão atá que o tempo acabou. No final, genial, dá o golpe de rins para ele próprio se inumar. Bom!

    Abraço

    ResponderEliminar
  40. Vim para rever esta contundente poesia sua.
    Abraços.

    ResponderEliminar

Se não leu o poema, por favor não comente.
If you haven't read the poem, please don't comment.
Obrigado / Thank you