quinta-feira, 30 de maio de 2019

Passa mais vezes por mim [226]




Quando passas,
há um baque açucarado
que me desmancha e constrói,
que me faz estremecer e serenar,
num síncrono acelerar e travar.

Talvez,
de mim escondidas,
uma parte se assuste e outra rejubile
como a noite fria se aquece
no remanso dos teus braços.

Talvez,
mas não há forma de saber o fruto
e de sentir as raízes tropicais
que em mim se espalham
e comandam como hospedeiro cativo
sem que me fales de amor.

Em todo o caso,
passa mais vezes por mim.


© Jaime Portela, Maio de 2019

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Na contraluz do sentir [225]




Com a paz de um encanto que desarma
ou em guerra com o fogo entranhado,
és mulher de carne e osso
ou anjo de sol que descega?
Do teu corpo
saltam auroras boreais
a cercar a árvore e a floresta
onde lobos se transformam em cordeiros.
Da tua pele,
saem centelhas douradas
para que, das formas,
se veja em ti a mestria
que Miguel Ângelo esculpiu.
É tua a virtude suprema
que nos transforma
em pseudo-machos latinos, impudentes,
mas logo caranguejos submissos.
E é na contraluz do sentir
que descobrimos a mulher fatal,
mulher de todos e de ninguém.


© Jaime Portela, Maio de 2019


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Dentro de mim [224]




Dentro de mim,
és eterna como o rio a correr para o mar.
És a harmonia hospedada e ancorada na claridade
que exalas a fluir alegremente no meu sangue.
Por isso, fico ansioso na expectativa
do cumprimento de cada promessa, ténue que seja,
porque sei da verdade e do sentido
que afloram no instante da nudez de cada gesto.
O que acontece na longevidade de cada momento
é a nossa realidade, são sementes lançadas à terra
pela queda vertical dos frutos do nosso querer.
Fora de mim, serias uma luz transitória.
E eu, um fogo-fátuo sem mastro nem vela.
Naufragaria.


© Jaime Portela, Maio de 2019


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Vê o que te cerca [223]



Vê o que te cerca,
não basta esvoaçar, andar por aí,
partir e chegar.

Ninguém te vai mostrar o caminho
ou perguntar para onde vais
e muito menos por que o fazes.

A vida precisa de ser abraçada
e enganada.
Cai, mas burla o fado
e esquece o coitadinho de ti.

É importante que te does,
que te entendas e que saibas
o que te levará a existir como pensas.

Vive e contagia,
agarra a luz na testa
e distribui os tesouros que encontres
na mina da vida.

Dá sentido aos teus passos,
põe amor nas entranhas do que fazes
e renasces.


© Jaime Portela, Maio de 2019


quinta-feira, 2 de maio de 2019

Um povo que decidiu ser livre [222]



Contra a vontade
dos que permanecem a cavalo
do poder despótico sobre a fome e a pobreza,
a revolta descalça dará frutos,
mas somente muitos mortos depois.

Ainda que ensanguentadas,
vencerão a verdade e as sementes
das plantas que trarão a paz,
vencerá a insurreição do querer renascer
sem olhar às incertezas do viver.

Já que os punhais geram punhais,
que vençam as flores
a dissolver a tirania que estrangula o povo
na míngua de mesas vazias.

Em qualquer caso, vencerá a liberdade
de um povo que decidiu ser livre,
porque não tem voz nem pão que lhe valha.


© Jaime Portela, Maio de 2019