quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O que ainda não te disse [248]



O que ainda não te disse
é um céu fechado
de palavras silenciadas pela distância,
atadas em cordéis de medo e ensacadas
como pulmões asfixiados num corpo
que aborta as palavras antes da nascença.

O que ainda não te disse
é um rio a transbordar
de palavras povoadas de ternura,
em estantes indecisas ou espalhadas
na cobardia de lençóis
que morrem à míngua do teu perfume.

Mas digo-te,
agora que o posso fazer,
que não tenho palavras que descrevam
o tormento de fugir das sombras
para me entregar
à luz das palavras que te precedem.


© Jaime Portela, Outubro de 2019


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

São tuas [247]



São tuas
as flechas que adubaram este árido solo,
agora fértil, de onde brotam flores
com o teu nome colorido nas pétalas.

E voltei a perceber, como em criança,
como é importante um sorriso
no meio da carência
e como é belo ver a criançada
a reclamar algodão-doce.

Mudaste, mudando-me,
e já nada é consentido ou necessário,
nem mesmo adoçantes,
para o sangue de animal selvagem
que por vezes temos na alma.


© Jaime Portela, Outubro de 2019


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Não me peças mais poemas [246]



Não me peças mais poemas
que eu sou a desordem
assassina e construtora dos meus eus,
de alma em debandada e à procura
do teu cálice.

Não me peças mais poemas
que eu sou o canto no deserto e no oásis
de um palco sem auditório
repleto de cegueira,
sem cortina de fogo e vomitório.

Não me peças mais poemas
que a tua rosa é cadeia sem desonra,
é saia comprida ainda sem rugas
da liberdade de te amar
na desordem dos meus e dos teus eus.


© Jaime Portela, Outubro de 2019


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Passei por uma pedra [245]



Passei por uma pedra
e não vi mais que uma pedra.
Olhei de novo,
era apenas uma pedra, era granito.
Voltei a olhar e reparei que tinha quartzo.
E feldspato. E mica.
E achei que nada mais via
naquela rocha perdida.

Mas não,
vi o Azul Bahia brasileiro dos teus olhos,
as Rosas de Monção e Porrinho
separadas pelo Minho,
as Pedras Salgadas e Ruivas
que tantas vezes pisas com leveza na calçada.
E vi as Pretas meninas de Angola
do teu vestido Impala
e o Verde Aquário do teu sorriso
onde me afogo e consolo.

E vi muito mais de ti
nessa pedra que não passa de uma pedra,
ela traz ao meu chão
mosaicos de lembranças
do roseiral Verde Glória que há no teu colo,
muito mais fofo e sedutor que o granito.


© Jaime Portela, Outubro de 2019


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Perdidos, vamos achando [244]



Nas tuas mãos,
já acesas,
a desviar orações nas palavras
e a espernear de prazer,
há uma prece.

Nas minhas mãos,
carentes da tua flor,
há uma rosa a perder espinhos,
a abrir pétalas,
a desbulhar-se em perfumes.

Perdidos, vamos achando
o prolongar do momento
em conflito com a urgência  de serenar,
entranhados,
a agitação que me afoga e te rompe.


© Jaime Portela, Outubro de 2019