quinta-feira, 26 de março de 2020

Gostava de fugir de ti [269]



Gostava de fugir de ti,
mas sou jóquei sem chicote
a deliciar-se nas tranças das tuas carícias
de amazona sem rédeas.
Deste tempo de esporas,
aferroado pelo galope da ideia desgovernada
no arco dos sentidos,
sou um coxo sem estribo
a desviar-me dos teus arroubos em flecha.
Sem trote, sucumbo aos teus
empolgados assaltos e morro
[com o freio nos dentes]
à boca da ternura virgem
desenfreada pelo teu corpo de Diana,
certo que vou renascer corcel resoluto
a cavalo da razão apeada.
Gostava de fugir de ti, do teu arco,
mas vou cortar as peias que me tolhem
e consagrar-me, devoto,
à jarra de cristal oculta
que guardas no templo da tua pele impoluta.


© Jaime Portela, Março de 2020


quinta-feira, 19 de março de 2020

Há cigarros assim [268]



Um cigarro deu comigo
no meio do deserto.
O fumo tragava amenamente
o sol de uma só cor
e nem sombra de palavras
a espevitar o meu fogo tão mortiço.
Mergulhei em miragens desfocadas
ao alcance falacioso
de um gesto entorpecido.
Vagueei fixo
nas imagens trémulas
para além do horizonte da razão.
Da minha fortaleza,
abatida e conformada,
só enxergava a cidadela enevoada,
derrubada,
asfixiada de sons indecifráveis.
Não me evadi,
desertei cobardemente
para a jaula do silêncio dos meus verbos
nos braços de fantasmas abstratos.
Há cigarros assim…


© Jaime Portela, Março de 2020


quinta-feira, 12 de março de 2020

Navegar [267]



o teu corpo no mesmo espaço que o meu
juntos
seduzidos
na cocaína da ternura
na pele mágica do toque
no suor fresco depois do calor da paixão
perdidos numa noite de sonho
sentados no espelho de água
da fronteira que mistura
o desejo de quilha afogada
louca pelo suspirar veloz das ondas
cíclicas
que se abrem e fecham à sua passagem
prendendo e libertando
o corpo do nosso corpo
em convulsões submersas de beijos
redobrados com a lenta acostagem
de barco fundeado
naufragado no cais de pernas
de braços largos
de remos
a navegar abandonados
nos gestos parados do olhar
até que vagas sucessivas
sem regresso
inundem o arrebatamento final


© Jaime Portela, Março de 2020


quinta-feira, 5 de março de 2020

O poema é uma lide [266]




O poema é uma lide
de cortesias e espadas.
O toiro, uma besta, é a palavra.
O poeta é o toureiro,
a cavalo ou apeado,
ousa tércios de bandarilhas
ou passes de muleta no verso.
É forcado sem capote,
pega as palavras de caras
e nunca de cernelha.
É cavaleiro que finta
as investidas do toiro,
pode matar ou morrer,
cortar rabos ou orelhas
na arena das palavras.
Mas só vencerá
se terminar a faena
com chicuelinas,
pegar o touro pelos cornos
e o inteligente atestar.


© Jaime Portela, Março de 2020