quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eu já não sei [285]



Enquanto, das palavras,
o grito e o silêncio se dissolvem
numa fogueira ateada por achas de inquietude,
os teus gestos, do beco para onde
há mil resignações te empurram, são inaudíveis.

E eu já não sei
se és a voz de um rio sem água
nas margens da garganta,
se alguém que se dobra para colher
uma flor que não existe.

Enquanto a noite, madrasta, prospera
na sombra que alumia a tua alma diurna,
e ela se tortura numa reza de tristezas madraças,
são invisíveis, nos teus olhos,
as centelhas que florescem no amanho do futuro.

E eu já não sei
se és a agonia amordaçada
pelo tirano calar do prazer,
se a alegria de asceta disfarçada
na luxúria do prazer desse calar.


© Jaime Portela, Junho de 2020


quinta-feira, 18 de junho de 2020

O que sou já nem eu sei [284]



Não sei se sou uma aldeia
que flutua, envergonhada, na firmeza das ideias
por entre a incerteza das palavras,
se uma cidade que deambula, meretriz,
na clareza dos verbos
com a boca na ambiguidade das ideias.

Em todo o caso, debato-me enleado
na força que não faço das fraquezas
e sinto-me roubado no absurdo das certezas
perante as verdades consertadas.

Serei gota que perdura, imiscível,
num mar de gente que da lua é igualzinha?
Ou rio de evasão e permanência,
num cacto que vive morto em quarentena
para resistir à falta de água?

Ou serei, estranhamente,
um corpo só, que na poesia se arrima
para melhor se calar?
Melhor explicado, pois também
não sei dizer tudo aquilo que não sou,
o que sou, já nem eu sei.


© Jaime Portela, Junho de 2020


segunda-feira, 15 de junho de 2020

Ao abrires as bainhas da pele [283]



Ao abrires as bainhas da pele
numa cadência de um milímetro por dia
[até que fiques nua],
vislumbro, em cada poro,
o indício e a fragrância da volúpia.

Do teu corpo, ora proibido, nada vi…
As minhas caladas mãos
não foram além da feição visível
[na tremura do toque e do tacto]
do teu medalhado decote.

Deste pousio,
um retiro intacto de propósitos
num conflito de herbicidas de enganos
com fertilizantes de mel,
germinará o ciclo virtuoso
da colheita sucessiva
[sem delito serôdio ou temporão]
dos recatos da alma, primeiro,
e dos recantos do corpo, depois.

Deste amadurecido vagar,
usufruto maior que a razão haverá:
as nossas bocas não serão estrangeiras
no beijar de caminhos
afeiçoados aos arbítrios da língua
e correrá geleia real [finalmente]
nos meandros das nossas fronteiras.


© Jaime Portela, Junho de 2020


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Chamar os sonhos à realidade [282]



Por vezes, notamos que o canto, dantes alegre,
deixa cair uma lágrima sentida,
esquecendo que o sonho preserva a queda
na triste elipse que nos confina
à letargia do não existir fetal.

Também sentimos que há momentos, sem magia,
em que não deixamos correr a meninice,
esquecendo que o tempo não refreia a nascente
da qual provém o enorme rio da vida.

Vemos, até, que a voz, habitualmente vibrante,
às vezes fica mortiça, declinada,
deixando de abrir prisões que acorrentamos ao colo,
esquecendo a fuga essencial
aos medos que conservamos em naftalina
nas gavetas das nossas fragilidades.

Nessas alturas, esquecemos que o sonho
antecipa o prazer das alvoradas
que hão de chegar como o vento,
que de tão prometedoras são o ar do nosso fôlego.

Mas nada de mal sucede quando a vida,
sem espartilhos, regressa célere à ribalta do sentir,
para que resista na voz de um canto menino
que pegue nos sonhos de novo
e os chame à realidade.


© Jaime Portela, Junho de 2020


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Depressão [281]



De mansinho, à falsa fé de tão subtil,
vai parasitando, da vida,
os fios do rumo e as âncoras do prumo.
Há um querer respirar
a verdade indivisível dos oásis e,
quando à porta do arvoredo viçoso,
evapora-se o refresco
da sombra sedutora das palmeiras
num caldo sem água,
inquieta e logo desfocada
no logro de uma ilha inatingível.

Erra a vida, pesarosa, na instabilidade da areia
num descompasso indizível,
e nunca há a certeza
onde é maior o doer deste confuso andar:
Se no vazio do peito,
ressequido, de um tão sofrido sentir,
se na mudez que se escuta tão conformada
a carpir.

O deserto, prepotente,
escava a fundura de um poço
donde é difícil fugir,
porque a vontade é uma avezinha entorpecida
pelos olhos especados da serpente
que a está a tentar engolir.


© Jaime Portela, Junho de 2020