terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Quadras soltas [312]


Não há morte que não venha

Atrapalhar-nos a vida

Mas não há vida que tenha

Uma porta sem saída

 

O conforto é uma doença

Que nos convida à preguiça

A aflição faz a diferença

Mesmo que seja postiça

 

Pensa bem no que tu dizes

Antes de abrires a boca

As palavras são raízes

Jamais permitem a troca

 

Nunca dei por mim danado

Que não tivesse razão

Às vezes estou enganado

Mas digo sempre que não

 

 © Jaime Portela, Dezembro de 2020


FELIZ ANO NOVO

Confina-te mas não te feches, infeta os outros de esperança e promove o contágio da paz, da fraternidade e da justiça social.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Natal dos sós [311]

 

Em cada ano, há uma noite de Natal

dentro das quatro paredes das casas.

Para as almas sem-abrigo,

mesmo com Pai Natal,

mas sem Menino Jesus, a noite é outra.

Distantes, essas almas

prendem-se nas sombras da claridade

que sai das janelas dos outros.

Para os sós e para os fora de casa,

a noite de Natal

é pior que as outras noites,

porque  ao pensamento

dos que nessa noite não vemos,

apenas chegam risos açucarados

de vinho com aromas de rabanadas.


 

© Jaime Portela, Dezembro de 2020


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Se pensas que os teus olhos perderam [310]

 


Se pensas que os teus olhos perderam

o verde despudorado, tão usual como inocente

nos montes e vales, por que caminhas

com a dúvida, a cada encruzilhada do caminho,

como quem se acautela, temerosa,

da investida de um amante intempestivo?

 

Se sentes, mesmo sem olhar de soslaio,

que há atalhos que vão dar à liberdade,

por que te esqueces de inscrever sob as pálpebras

a verdade que anda à solta sobre a tua pele,

se ela se debrua transparente de desejos tão banais?

 

Se achas que és agora uma planície descorada,

impregnada das fragilidades quebradiças

do trigo maduro, por que tentas fugir

do vento que te penteia de carícias,

quando o teu corpo é uma seara espigada por ceifar?

 

Se és tudo isso, eu já não sei por que me queres

quando te deitas comigo na compreensão dos trigais.



© Jaime Portela, Dezembro de 2020


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O emaranhado moliço da insónia [309]

 


Reconstruo-me pescador

quando lanço as redes

para sentir o sal da tua pele nas mãos.

Ao recolhê-las, não há peixes,

apanho flores e acarinho-as

no sono do meu barco, agora teu.

Também não há nuvens de protesto

ou serpentes marinhas nervosas

na brandura de seda do teu corpo.

Há uma estranheza no ar,

que se refaz como a espuma

em marés de desejo,

enquanto a lua nos olha ciumenta.

Gozámos a volúpia

do que veio para dentro de nós

como a surpresa de um susto.

A dádiva, abolindo-nos da pertença,

deu-nos asas para cairmos de amor

nos lírios da praia

molhados pela noite cercante

e para nos abrigarmos nas dunas,

que sorriram sem espanto nem pranto

com o emaranhado moliço da insónia.



© Jaime Portela, Dezembro de 2020


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Dezembro não existe [308]



Em Dezembro,

as ruas apartam a neve da fantasia,

mas a felicidade oferecida não é o fruto

da seiva que alimenta colheitas

de momentos sem tempo.

Em Dezembro,

a felicidade é empacotada

em doses de palavras

vendidas com lacinhos de gestos voláteis.

Dezembro não existe, foi inventado,

é o output de um chip que nos implantaram

para termos o sorriso

com a declinação precisa das miragens.



© Jaime Portela, Dezembro de 2020


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Por ti [307]

 


Por ti, eu corto os pulsos aos dias

e, das noites, arranco devoto as raízes,

para que mentiras ou verdades

sejam profanos cantos de vida,

mas do pecado absolvidos.

 

Por ti, sou capaz de me ofertar

em prodígios de pão e de vinho,

de te despir sem macular o sacrário

e de afastar o desapego

desses verdes olhos sem cor.

 

Por ti, posso agarrar o sol, inteiro,

para enxugar do teu corpo a dor,

do teu sorriso posso romper a prisão

e beber o grito libertário

no cume festivo do êxtase partilhado.

 

Por ti, em qualquer caso, serei

chuva benfazeja ou sopro milagroso

das feridas malfeitoras do teu peito.



© Jaime Portela, Novembro de 2020


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Trôpegos [306]

 

Trôpegos, caminhamos dúbios a rezar

por um céu mais limpo e luzente,

somos medíocres infalíveis

a promover mediocridades

ou andamos de rastos

na secura do martírio transpirado

em desalento coletivo.

A postura, num modo desviante

e desgraçado em tempos traiçoeiros,

porque ficamos focados

nas consequências da noite

à luz de faróis invertidos

que não iluminam as causas,

dobra-nos a convicção pela espinha

e não rompe o manto escuro

que nos ata a crescença.

Humanos, somos gente descuidada

sem estrela nem rumo, que se lamenta

e não se governa no barro da hipocrisia

onde alegremente fervilha,

nem se deixa governar no lamaçal

que sem o sentir o perfilha.



© Jaime Portela, Novembro de 2020


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Escrevo-te [305]

 

Escrevo-te

no meio de uma linha de montagem

de pássaros felizes, que das palavras

se perfumam apressados na tua direcção,

enquanto me penso percebido

pela árvore do teu sentir

e onde pousam com este canto nas asas.

 

Serás minha confidente se devolveres

os pássaros anilhados com palavras tuas,

sublinhadas pela mão que olha de frente

e agarra consistente as emoções.

 

Serás minha amante se vieres até mim

montada nos pássaros, pela urgência de ouvir

a tua própria alma, apregoando palavras

a calar o teu silêncio de laços por abrir.

 

Serás minha confidente

se o teu corpo não se acrescentar ao meu

nas asas do desejo.

Serás minha amante

se fores lava enquanto me beijas

rubra na aventura incerta da nascente.

 

Serás minha

se as tuas cartas tiverem o selo do amor

com o carimbo da paixão.



© Jaime Portela, Novembro de 2020