quinta-feira, 29 de abril de 2021

Morri descontente [329]

 


Perdi a hora do regresso

quando um escusado restolho

se desprendeu da fuga de pássaros,

amplificando os saltos

ao ritmo das borboletas

que trazias no corpo.

Acendi-me na chama que acumulavas

quando me desfraldaste em carícias

e te embalei nos meus braços,

como se neles tudo fosse inaugural.

Morri descontente na hora do adeus

quando o verso do espelho me sacudiu,

atraiçoando a verdade quente

da tua pele na minha.



© Jaime Portela, Abril de 2021


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Talvez sejam as palavras [328]

 

Talvez sejam as palavras

que semeiam a simplicidade

daquilo que nos conquista

como escadas sem regresso

em direção à evidência.

Ou porque, de alma nos olhos,

nem sempre acorrentada à cegueira,

conseguimos ouvir com nitidez

o fogo vagaroso e demorado

que vai crescendo dos sonhos.

Em qualquer caso,

para que a fantasia não espigue,

é preciso ter o saber e a felicidade

de sentir a lucidez dos desejos

e de compreender

a imparcialidade do que sentimos.



© Jaime Portela, Abril de 2021


quinta-feira, 15 de abril de 2021

Ao ver-te [327]

 

Ao ver-te,

os bons presságios foram veias

num alvoroço de sangue e de chamas

a derreter o gelo da surpresa na boca.

Depois, o ruído da quase certeza

ao esvaziarmos dos sons a cidade

e ao habitarmos a ilha que, do nada,

emergiu à nossa volta deserta.

O cume da noite, de contemplações

em aromas de sal e doçura,

escancarou a verdade há muito na mesa

no enlevo cavado de marés cheias

e nos sussurros em desejos submersos.

Mas a carne,

apesar da agitação dos seus rios silvestres,

já teria desatado os nossos laços

se eles não se multiplicassem, fecundos,

a cada vez que nos descobrimos.



© Jaime Portela, Abril de 2021


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Perfeccionista [326]

 

Há, no seu sangue,

um instinto para o debruar contínuo das formas.

Não direi que o faça com afeto, ainda que,

a cada tropeção, logo se apronte um recomeço.

Mas o desejo irreprimível para bolear cada esquina

torna qualquer forma perpetuamente imperfeita.

Nesta atração pelo suplício de Tântalo redondo,

tenta alcançar o prodígio

tateando toda e qualquer zona irregular,

não sabendo que será para sempre lembrado

pela teimosia das mãos, que não param de polir.

E tem, antes da aurora, a costumeira aflição:

as formas, a retorcerem-se de loucura sem remédio,

acordam-no com a luz estroboscópica do pesadelo,

onde faz palavras cruzadas num jogo de xadrez.



© Jaime Portela, Abril de 2021


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Agarro a tua luz [325]


 

Agarro a tua luz

mal te desenhas em tons cálidos

e a tua cor se entrelaça

no desejo dos meus dedos, ávidos de ti.

Com um murmúrio envergonhado,

inundas a leitura dos meus gestos

e estrangulas vendavais

em demoras calculadas pelo corpo.

Adenso-me

no fundo do teu verbo de água,

numa dança sem império,

e é na prisão que morremos abraçados.



© Jaime Portela, Abril de 2021