segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Sabemos que está na hora [379]

 


Sabemos que está na hora

de empreendermos voos chãos,

sem profundidade ou altura

[direi mesmo inúteis].

É o tempo de submergirmos em nós

e de estrangularmos as veias,

para que nelas suspendamos o andar.

Se expulsar as esperas,

viro o coração do avesso para te esgotar

e fica o teu silêncio a sangrar-me.

Se cortar os dedos do desejo,

vou enterrá-los,

esperando que cresçam sem asas para ti.

Mas suspeito da eficácia do golpe fatal:

sou um guerreiro como Ulisses

e não te imagino a despir

a Penélope que tens entranhada.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O futuro num pano verde [378]

 


O futuro num pano verde

de uma mesa de seis metros,

como se o jogo enriquecesse um país,

como se o recontar da História

justificasse o querer fazer parte dela.

Em cada mão, escorrem arbítrios,

incertezas traçadas sem rendição

à espera do estrebuchar do perder

perante o garrote do ditador.

Os ainda de pé,

discordam sem dizer qual o trunfo

e, para não dizer que passam,

esboçam sanções com balas de borracha

ou granadas de fumo impressionistas

e mijam nas flores do pântano

ficando à espera que cresçam.

E assim vamos nós,

sem canto nem espanto,

ao colo de algozes sem alma

e à mão de jogadores embusteiros,

enquanto a realidade sabe

que o povo é que se fode.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

As palavras [377]

 


Se fossem arte

as palavras que te digo,

percorreria o teu olhar

tão lentamente

que encontraria um poema

no encapelar das tuas coxas

contra mim.

 

Se não fugissem

as palavras pouco a pouco,

desvendaria o teu querer

tão docemente

que irromperia um solfejo

no revestir da tua noite

em contraluz.

 

Se percorresse

a matriz das tuas mágoas,

reavivaria o teu andar

tão vivamente

que abraçaria a felicidade

no roçagar do teu peito

sem palavras contra o meu.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A rosa sensitiva [376]

 


É de pinho maduro

a essência que aquece a minha alma

quando me curvo sobre o perfume

da rosa sensitiva do teu corpo.

Perante esta verdade,

entranhado no álcool

só concedido pelos Deuses,

tenho andado embriagado

com as borboletas

que vão passeando à nossa volta.

Guardo,

dos segredos de mão dada enamorados,

o amanhecer da luz

que me trespassa como acendalha

que insiste em atear-me

nesta combustão que viva te pertence.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Ao sol [375]

 


Ao sol de um ardor sempre fresco de alecrim,

abracei, na partida,

os contornos do teu corpo

em tristes ais de água vestido.

Tinhas o rosto submisso das feras conformadas,

mas a lua derradeira já alumiava

o desejo cinzelado pelo querer do regresso.

Voltaremos,

porque há mastros enfunados

na barca da saudade

a lamber o estímulo dos teus lábios

alagados no prazer de um só beijo trocado.

Chegaremos,

porque há fome de mel

e de seios rosados no palato da vertigem,

e anseio do orvalho

que de alegre rebelde se confesse.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Dores de cabeça [374]

 


Desta vez,

não terás o poema que esperavas,

de palavras doces

a roçar na tua pele abandonada,

porque preservas chão

o mar onde te moves

para não te afogares nas audácias

que a tua mente recorda.

Não terás as carícias

que a tua sede pedia,

de falas canoras e mãos redentoras

no teu corpo inquieto,

porque só há aspirantes a náufragos

quando se luta e arrisca

sobre o fio delgado sem rede,

onde o peito aberto se penteia.

Desta vez, prefiro navegar distante

da ondulação dos teus sinais,

à vela da solidez do teu carácter.

Estou com dores de cabeça.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022



segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Escrevo [373]

 


Escrevo para que os teus olhos

fiquem fora das órbitas

enquanto te sufoco.

Faço-o para te assaltar e beijar

à medida que te descomponho

e te possuo com as palavras

afiadas pela tua imaginação.

O que escrevo,

só te sacode pelo som da tua voz,

pelo convite da tua pele

para que seja perfurada pelo toque

e este se hospede, amplificado,

entre o sangue

e a medula do teu querer.

Solto as palavras

e o teu livre arbítrio vai respirá-las

até que te controlem

e tenhas que te despojar da pele

para te libertares da seiva

que ameaça eclodir,

até que se torne insuportável

não as ouvir com o olhar arregalado

no delírio febril da perceção.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022



quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Efeito Doppler [372]

 


Entre o que ainda vejo

do passeio das mãos e o que ouço

da tua boca ensandecida,

passa um tempo colado à pele

distorcido pelo Efeito Doppler.

Se, antes do que ainda vejo e ouço,

os ponteiros giram

ao ritmo sonolento da espera,

caminham, agora,

com as mãos na boca,

cada vez mais depressa que a realidade.

E sabemos que o tempo

há de tornar esse tempo

num minguado instante implodido,

a menos que,  às minhas mãos,

a tua boca volte a enlouquecer.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2022