segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Réquiem pelos ENVC* [577]

 


Entre as leiras da Areosa

e o pacato rio Lima,

entalado pelo mar

contra o Campo da Senhora da Agonia,

com a descurada visão de Santa Luzia,

o trabalho era porco, pesado e perigoso.

 

Mas saíam navios pela barra

como filhos ingratos que jamais regressariam

à casa onde deixavam os pais,

alguns mortos e muitos vivos.

 

Houve o tempo, já esquecido,

dos rebites cravados a fogo de carvão.

O tempo da escravatura dos balões

que mandavam operários para casa

de mãos a abanar

sempre que chovia ou o trabalho diminuísse.

 

Houve o tempo do traçado das curvas do navio

desempoladas de joelhos com virotes,

como quem reza,

até que os computadores pusessem fim

a tão sacrificial religião.

 

Houve o tempo da surdez por tanto ruído

e das doenças dos pulmões,

até que surgissem máscaras e tampões.

 

Houve o tempo do trabalho descalço

e das quedas dos andaimes geringonças,

até que chegasse calçado seguro

e andaimes sem pranchas já podres.

 

Resistimos à loucura de patrões

e à dança de cadeiras mancas

que a revolução pariu.

Resistimos à queda do Escudo

porque fomos salvos pela queda do Escudo.

 

Até esperamos por Godot,

mas nem Beckett nos ouviu,

não resistimos à inaptidão infantil da gestão

nem ao malandro arbítrio do poder.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024

 

 

*ENVC – Estaleiros Navais de Viana do Castelo – dedicava-se à construção e reparação navais. Há cerca de 10 anos, foram despedidos todos os seus trabalhadores (mais de 600). Venderam os equipamentos a uma empresa que iniciou a mesma atividade pagando um aluguer mensal quase simbólico ao Estado (proprietário do terreno).

Da queda do Escudo (moeda portuguesa da altura): um contrato de 1972 ou 1973, para 2 navios químicos com cerca de 180 metros de comprimento, foi feito em Escudos, que começou a desvalorizar-se logo de seguida. Foi um desastre, o dinheiro recebido para os 2 navios foi necessário quase todo para o primeiro. O prejuízo levaria à falência se não fosse a nacionalização da empresa. Meia dúzia de anos mais tarde, foi assinado um contrato em dólares para 2 navios para o Brasil de dimensão idêntica. E como o Escudo continuava a desvalorizar os lucros foram enormes (1 dólar, de 40$00 no início, estava a 140$00 no final).


39 comentários:

  1. Pregnata di grande originalità, e pregio, questa bella lirica intensa e coinvolgente. Un caro saluto

    ResponderEliminar
  2. When governments handed over decision-making power to corporations, we were left deaf, barefoot, and literally watching the world go by and the Titanic sink over and over again.
    (ꈍᴗꈍ) Poetic and cinematic greetings.

    ResponderEliminar
  3. Um bom exemplo de gestão danosa.
    Que em teoria constitui crime.
    Mas que continua e ser praticada.
    E sem castigo.
    Abraço, boa semana

    ResponderEliminar
  4. Bom dia de Paz, amigo Jaime!
    Conseguiu um bom apanhado poético do que um povo viveu e ainda sofre resquícios do infortúnio vivido.
    Hoje em dia, dao outros fatores qi4 assolam todos os povos. Não menos angustiantes.
    Tenha dias abençoados na nova semana!
    Abraços fraternos

    ResponderEliminar
  5. OLá, Jaime, tudo bem?
    Excelente esse teu poema pelo tema que aborda. De fato um réquiem a todos os trabalhadores que por muitas décadas foram obrigados a gastar suas vidas em trabalhos mal remunerados e perigosos.

    ResponderEliminar
  6. Olá, amigo Jaime
    Foram muito importantes na construção naval os ENVC. Não sei o que aconteceu entretanto com eles. Mas, não nos admiremos, em Portugal, toda a indústria de qualidade desaparece ou é abandonada à sua sorte. Enfim...é lamentável.
    Excelente poema, que põe muito bem o dedo na ferida.
    Deixo os votos de feliz semana, com tudo de bom.
    Abraço amigo.

    Mário Margaride

    ResponderEliminar
  7. O que acontece um pouco por toda a parte....Abandona-se, esquece-se... e fica um vazio intolerável...
    Beijos e abraços
    Marta

    ResponderEliminar
  8. A amargura e a raiva da má gestão , da incompetência e do total descaso pelos interesses do país está presente na minha vida desde que me lembro de mim...

    Abraço, meu querido amigo, boa semana.

    ResponderEliminar
  9. E tudo isso ( embora de certa forma encapotado ) não existe um pouco ainda nos dias de hoje?
    Gostei muito de ler.
    .
    Votos de uma semana feliz.
    .

    ResponderEliminar
  10. Um poema magnifico!
    Infelizmente, a má gestão, a dança das cadeiras e dos tachos e a falta de preocupação pelo povo é uma realidade de ontem e de hoje. Mudam-se os políticos mas fica tudo na mesma.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  11. Poema que nos fala de uma realidade dolorosa e dolosa, de indiferença e de desmazelo gestacional, que tira o pão da boca dos que vivem do suor do seu trabalho.
    Infelizmente, não aconteceu apenas nos ENVC. Outros sectores têm sido atingidos pelo mesmo mal.

    Um beijinho amigo e votos de tudo de bom , Poeta Jaime Portela!

    ResponderEliminar
  12. I enjoyed reading your words. Very nicely done.
    www.rsrue.blogspot.com

    ResponderEliminar
  13. Um poema que dá nota de um episódio lamentável da história deste país. A poesia também é isto.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  14. Excelente tema e tão bem colocado em poema. Infelizmente são muitos os problemas de gestão em que só mudam os protagonista numa dança das cadeiras, mas que o povo continua sofrendo.
    Grata por sua visita. Abraços.

    ResponderEliminar
  15. Olá caro Jaime.
    Muito bom amigo poeta.
    Houve e creio que ainda há.
    Gostei imenso do seu desabafo em forma de poema.
    Feliz semana pra você.
    Beijo!

    ResponderEliminar
  16. Me gusto el poema. Te hace pensar. Te mando un beso.

    ResponderEliminar
  17. Abraço da amiga também sem posição política definida …
    Amiga essa, que continua a admirar cada vez mais a sua lucidez política e social.
    Li com o maior interesse as informações necessárias para compreender o poema.
    Que descreve um dos terríveis momentos da história do nosso país.
    A importância da sua POESIA, sem ideologia política, é coisa rara nos nossos dias.

    ResponderEliminar
  18. Muy reflexivo y buen poema.
    Un abrazo.

    ResponderEliminar
  19. Caro Jaime
    Foi um prazer enorme ler este seu poema,
    dando conta de um dos episódios mais negros
    da história deste país.
    Muito obrigada pelos apontamentos em nota
    de rodapé.
    Abraço
    Olinda

    ResponderEliminar
  20. Boa tarde JP
    Um poema muito verdadeiro, e muito falado na altura do seu encerramento.
    Só que este é um exemplo de muitos outros casos parecidos.
    E todos sabemos, mas...
    As mágoas e dores para quem trabalhou nos ENVC só, os que lá estavam é que podem avaliar.
    Um bom assunto, em forma de poema.
    Boa semana com saúde.
    Um beijo
    :)

    ResponderEliminar
  21. Como siempre, un poema magnífico.
    Un abrazo.

    ResponderEliminar

  22. A actualidade num excelente poema que aborda um tema de outrora.
    Beijinho, Jaime.😘

    ResponderEliminar
  23. Bem pertinente o tema abordado!
    Obrigada por dar a conhecer... 😘

    ResponderEliminar
  24. Jaime, que texto profundo e tocante! É impressionante como você capturou a dureza e a resiliência dos tempos passados. A forma como descreve o trabalho árduo e os desafios enfrentados é realmente poderosa. Sua escrita traz à tona a realidade de uma época que muitos já esqueceram, mas que moldou tantas vidas. Obrigado por compartilhar essa reflexão tão rica e cheia de história. Continue nos presenteando com suas palavras! Grande abraço.

    ResponderEliminar
  25. Olá, caro amigo e poeta Jaime,
    o seu poema é um canto da dor sofrida por
    todos os homens e mulheres que sofrem pelo
    trabalho escravo que são impostos pelos poderosos.
    Não conhecia esse lado da história de Portugal, mas esse
    seu poema escrito com o talento do poeta, e com a sensibilidade de alguém que se preocupa com os fatos sociais, despertaram em mim a curiosidade sobre tal fato histórico, que percebo denigre certa administração pública de Portugal.
    Um poema grandioso que gostei muito de ler.
    Uma boa semana, grande abraço.

    ResponderEliminar
  26. Olá talentoso Jaime!

    É um episódio que desconhecia que tinha acontecido. Pude aprender bastante através deste seu poema!

    Um abraço e uma boa semana para si! 🙂

    ResponderEliminar
  27. Um poema bem escrito por quem sabe do que fala.

    Beijinhos e tudo de bom!

    ResponderEliminar
  28. Sou do tempo desse trabalho escravo, trabalho sem as mínimas condições de segurança, onde os patrões ganhavam tudo e os miseráveis de pés descalços, recebiam uns trocos que mal chegava para dar um pão aos filhos; não me dei conta do que se passava ai na tua terra, embora vivesse muito perto, mas apercebi-me da miséria em que viviam as pessoas da minha aldeia; crianças iam para a escola com frio e com fome e, chegados a casa a situação em nada se alterava: eram muitos os filhos e muito pouco o dinheiro para os alimentar. Não havia fiscalização, não havia saúde gratuita, não havia merenda escolar, nem havia associações que ajudassem a mitigar a fome que reinava um pouco por toda a parte. Hoje, muita coisa mudou para melhor, mas, mesmo assim ainda há muita exploração; há leis trabalhistas, há fiscalização, mas o dinheiro tem muito poder e consegue que as barbaridades contra os mais desfavorecidos continuem sem qualquer penalização. Não consigo entender, Jaime, que, nós, portugueses, com emigrantes por todo o mundo, trate
    mos tão mal aqueles que procuram o nosso país para terem uma vida mais digna: muitos dos que promovem esse trabalho escravo já foram emigrantes, mas depressa esqueceram o que passaram fora de casa. Li com atenção o que escreveste sobre os estaleiros de Viana, mas, como deves imaginar, estou mais ou menos dentro do assunto; de qualquer modo, foi bom recordar. Infelizmente, Jaime, o descaso pelos outros continua e a pobreza ainda é muita, aqui, neste nosso cantinho " à beira-mar plantado ". Obrigada pelo belo poema cujo tema de belo nada tem. Beijinhos, Amigo, e votos de saúde para todos vós
    Emilia

    ResponderEliminar
  29. Embora estes abusos hoje em dia sejam menos frequentes, eles ainda existem, sempre os poderosos e endinheirados tirando vantagem dos mais pobres. Um abraço!

    ResponderEliminar
  30. E tudo evoluiu, a passo de caracol, com retrocessos possíveis de levar a tribunal, mas evoluiu.
    E as leis da Comunidade Europeia têm ajudado em matéria de direito.
    É importante recordar os tempos .maus e fazer comparações.
    Abraço, estimado Poeta.
    ====

    ResponderEliminar
  31. Infelizmente é real e parece não ter fim os episódios que descreve.
    Senão esses _ outros muitos que os governantes não encontra meios de reprimir., ou não querem ou são incompetentes mesmo,. Obrigada por dar-nos a conhecer , Jaime
    meu abraço

    ResponderEliminar
  32. La historia vivida, marcada , de lo que el hombre a debido camianr en este mundo, de lo que ha construido y moldeado a consecuencias muchas veces ingratas , pero lo mismo permite al ser humano esa lucha por sobrevivir y no dejarse arrastrar por el dolor.
    Abrazos.

    ResponderEliminar
  33. Querido amigo, precioso poema para reflexionar, me encantó
    Abrazos y te dejo un besito, que tengas un bonito día

    ResponderEliminar
  34. Olá, amigo Jaime
    Passando por aqui, relendo este excelente poema que muito gostei, e deixar os meus votos de feliz fim de semana, com tudo de bom.
    Abraço amigo

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

    ResponderEliminar
  35. Querido amigo, que pases un precioso día con amor y felicidad.
    Abrazos y besitos

    ResponderEliminar
  36. Saludos, amigo Jaime.
    Su texto me ha hecho pensar que cuando las cosas van así, de nada valdrá esperar a que venga Godot y las arregle. Mejor será sentarse a leer una obra bien densa de física cuántica.
    Con la que tampoco entenderemos ni arreglaremos nada, pero al menos podremos tomar una copa de buen vino dejando airear la mente y esbozar una sonrisa.
    Saludos desde el Mediterráneo.

    ResponderEliminar
  37. Os governos primam em entregar as suas cometências aos privados. Depois tudo fica pior e nada edificante. Quem representa os Governos, é, normalmente beneficiário de modo directo ou indirecto.
    Assim é Portugal.
    Uma excelente intervenção, Jaime.
    Parabéns.


    Abraço,
    SOL da Esteva

    ResponderEliminar
  38. Boa noite amigo Jaime!
    Tudo o que era, já nao o é e assim anda um povo aflito...dá o dito pelo nao dito.
    Interessante, gostei de ler!
    Obrigada pela gentileza da sua visita.
    Beijinhos
    Luisa Fernandes

    ResponderEliminar
  39. Olá, amigo Jaime
    Passando por aqui, relendo este excelente poema que muito gostei, e deixar os meus votos de uma feliz semana, com tudo de bom.

    Abraço amigo

    Mário Margaride

    http://poesiaaquiesta.blogspot.com
    https://soltaastuaspalavras.blogspot.com

    ResponderEliminar

Se não leu o poema, por favor não comente.
If you haven't read the poem, please don't comment.
Obrigado / Thank you