quinta-feira, 28 de junho de 2018

Em construção [178]




Caminho
afastado de terrenos interditos,
percorro trilhos
arredados de recatos burilados
do meu mutismo.

Mas a cada verbo que empurra
a distância para longe
deixo de ver
o que de mim persiste
aceso ou destruído.

E palmilho o desvendar
e o devorar do engano
que teria amanhecido
em todos os começos,
pensando-me já construído.



© Jaime Portela, Junho de 2018


quinta-feira, 21 de junho de 2018

Dentro de nós [177]




Dentro de mim,
as tuas mãos açucaradas
trazem rotas nas vielas
onde nos queremos beijar,
enquanto adivinhamos
o chamejar dos festins
aos nossos pés ajoelhados.

Dentro de mim,
as tuas formas plantadas
atam asas nas janelas
onde nos queremos olhar,
enquanto ousamos
o rebentar dos motins
aos nossos ais atiçados.

Dentro de ti,
as minhas dores desmaiadas
trazem gozos nas flanelas
onde nos quisemos amar,
enquanto harmonizamos
o ressoar dos clarins
aos nossos vens acabados.

Dentro de nós, belisco-te
para que de novo me acordes.



© Jaime Portela, Junho de 2018


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Uma planta, frágil que seja [176]




Uma planta, frágil que seja,
move-se,
agita-se,
retorce-se e pode até perder folhas e ramos,
mas aproveita a acção do vento
para afundar as raízes no solo
e ganhar mais equilíbrio,
enfrentando-o sempre mais forte.

Cambaleias e dobras-te
no vendaval dos lençóis escuros da insónia,
com o sabor adormecido na boca em desejo,
e maldizes os cardos que o teu corpo
teima em abrir na solidão do teu peito.
Magoas-te desgrenhada no sonho
à procura do equilíbrio,
mas cresces.

Enquanto isso acontece,
nada mais devo fazer que fabricar prateleiras
para que organizes
a tua lucidez e os teus gestos.




© Jaime Portela, Junho de 2018


quinta-feira, 7 de junho de 2018

Overdose [175]



Gosto de escrever para me desprender,
fazendo coisa diferente e mais leve
do que faço pelo dever.

Mas hoje as palavras acenam-me
com o peso vital da razão
e estendem-me
[mandantes e revoltadas]
a avenida do triste enfado da pátria,
a passadeira do negrume da crise
e a diária deturpação da notícia.

As palavras incriminam a algazarra
que dissimula o culpado,
mas naufragam [ignoradas]
na vozearia avidamente trincada
até se esmigalharem em escândalos
e em linchamentos na praça pública.

Para gáudio de um povo necrófago,
na curiosidade mórbida
de ver o acidente na estrada,
alimentamos shares e audiências
de tudo o que é tabloide.

Seremos nós [maldito fado]
para sempre viciados
no consumo de uma oferta
em doses cada vez mais virulentas?



© Jaime Portela, Junho de 2018