quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O alento desta arte de esperar [298]

 

O alento desta arte de esperar,

paciente, está no feitiço da voz

do último silêncio e nos muros de finura

que entre nós interpões.

 

Díspar estátua,

salto os muros desatentos

e subo ao telhado

para escorregar pela caleira.

Ao cruzar com a janela,

passo leves os meus dedos

a chiar no vidro dos teus lábios.

 

Diva e gelatina,

atiras-me beijos em queda livre,

que me acertam em cheio

como um vaso de flores

no caminhante indefeso.

 

Com a arte deste alento,

vou tentando

e esperando que te lances da janela

e dês aos meus braços

o que me roubas faz tempo.



© Jaime Portela, Setembro de 2020


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Apatia [297]

 

É andar pelas águas de um lago

sem espanto nem pranto

e sonhar ao ritmo das baladas

de um mar sem sal nem vendaval.

É trazer dentro do peito estagnada

a ordem contrafeita

e amarrar pelos cornos o tumulto

do jazz da rebelião.

É esquecer que a mudança é fruto viçoso

do impulso que faz o sangue vibrar.

É ignorar que a bola não rebola

sem um chuto

e que sem a batalha das asas

o voo cai maduro no chão.

É beber das rotinas o ferrete

que coze a vida em fogo mole.



© Jaime Portela, Setembro de 2020


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Rio de silêncio [296]

 

A renúncia,

marcada na areia dos dias

como dunas a percorrer a pele,

a desenhar-se nos poros.

 

A distância,

ampliada no olhar,

a penetrar na voz

de ouvidos metodicamente fechados.

 

O sol,

a debelar-se banal

à luz da prece dispersa na noite,

de mão retraída no brilho.

 

O temer

que para lá do fim

há uma pedra na matéria,

um nada, um muro,

alguma terra invisível

e um rio de silêncio sem retorno. 



© Jaime Portela, Setembro de 2020


quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Até já [295]

 

Há pétalas aflitas,

mas também rosas seguras como heras,

na viagem inquieta do teu corpo.

 

Sem que a voz se apague

com o hiato da chama escurecida,

enquanto a luz andar presa no teu âmago

haverá fogo verdadeiro

no regresso dos teus olhos.

 

Vai, até já, fala com os anjos e diz-me

da brancura da noite ao acordares.

Traz agarrada à cintura a tua palavra,

líquida e sólida

como a certeza de te amar.



© Jaime Portela, Setembro de 2020