quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O gato e o rato [303]

 

Estando à mesa, não estou na mesa contigo.

Contudo, foi bom termos jogado

enquanto o jogo durou.

Acordei na renúncia do teu fado

porque o jogo da verdade terminou

por falta de cartas não viciadas.

Ainda que não te veja, nem tu me vês,

sei que continuas a beber o vinho da fantasia

na certeza de que o jogo continua.

Só que , nesta trama de mãos deturpadas,

continuaremos contrários

no segredo do gato e do rato.

Mas previno-te que podes ter adormecido gato

enquanto eu como da realidade as espinhas

e, ao acordares, eu ser um gato contigo.



© Jaime Portela, Outubro de 2020


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Perguntas-me quem somos [302]

 


Perguntas-me quem somos

e eu escuto no espelho

o meu hálito impregnado de ti.

Corpos previsíveis

ou almas reais no saber maduro

que exaltamos a cada alvorada verde?

 

Sei que tatear o aceno dos teus seios

e sentir a explosão sedutora

da mocidade no teu rosto

é a senha de uma réplica a apontar

um jardim prometido pela mira do destino.

 

E também sei que as tuas mãos

pensam nas minhas,

que hão de chegar ao teu corpo

com o desejo de te tocares

como rosa por abrir,

cuidando que as carícias são minhas.

 

Por isso,

respondo-te que é o teu ser

que me faz sentir o que pareço,

que não sei se é diferente do que eu sou.

E vice-versa.



© Jaime Portela, Outubro de 2020


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Guardadores de rebanhos e gaivotas [301]

 


Os rebanhos de algodão,

ao entardecer,

desciam às pastagens dos nossos sossegos

e apenas a suavidade das gaivotas

reflectida nos teus olhos

parecia querer abarcá-los.

Enquanto as nossas bocas se arrebanhavam,

havia um mar à nossa volta em gritaria

com o desejo de caber

na cegueira serpenteante das mãos,

ávidas em percorrer algodoeiros dóceis.

Abrimos, ao mar, todas as portas do peito,

e passámos a guardar

os rebanhos e as gaivotas dentro de nós.



© Jaime Portela, Outubro de 2020


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Vejo-te [300]

 


Vejo-te, nítida,

projetada sob as pálpebras cerradas,

mas inacessível

aos sabores proibidos do Olimpo.

Vejo-te, já cego,

salpicada de estrelas,

nuvem de pele macia, frutada,

mas numa fuga voluptuosa de seda inatingível.

Vejo-me, invisível,

no compasso da luz a ninar-te o coração,

a flutuar nos teus fluidos e, num pestanejar,

a percorrer as estrelas contigo.

Vejo-te, visivelmente minha,

por entre as pálpebras descerradas,

mas nem por isso menos proibida.



© Jaime Portela, Outubro de 2020


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Viajamos confinados [299]

 


Viajamos confinados

na cauda de um cometa em extinção

a queimar laços que tombam apagados

para a negra vertigem do nada.

Sentimos as mãos a enferrujar

no amanhecer das lágrimas,

delgado rio a estilhaçar margens

em sossego de aquário.

Somos filhos incógnitos de um querer

estrangulado pelo inamovível asceta

que persiste de mãos atadas no peito.




© Jaime Portela, Outubro de 2020