quinta-feira, 27 de abril de 2023

Mistura [498]

 


Em mim, enraizada de vez,

é acesa a mistura de água e fogo,

sou um ténue fio de água

ou um rio desbragado,

chama delgada ou fértil labareda.

 

E a terra que me escorre dos dedos

nem sempre quebra os excessos

ou as carências,

porque a humidade aquecida no ar

nunca é imparcial.

 

Incapaz de evitar a paixão

à tua presença,

acendo os círios no sangue

e, de tão tangível, sou a saudade

que se vê na tua ausência.

 

Se me abraças, sei que de mim

fazes certezas nos enredos do tempo,

e é por isso que somos capazes

de soterrar o brilho quente e húmido

de todas as dúvidas.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Cravos de Abril [497]

 


Aos nossos olhos,

nas praças e nas ruelas mais ínfimas,

nos olhares e na fronte dos transeuntes,

nas paredes e nos telhados das casas,

e até nos comboios e carros que passavam,

ouvia-se um canto

que proclamava o que sentíamos.

Um canto que gravámos a fogo

com o estilete da liberdade

no tronco da vida, ao som das cotovias,

num sobe e desce que desenhava letras

com o tamanho do impulso

que as nossas asas combinadas

acrescentavam aos ventos da fraternidade.

Cantámos à sombra dos cravos vermelhos de Abril

com o sol da paz que hoje nos foge,

como quem empunha uma arma

e dispara em legítima defesa,

alheios à desigualdade e à incerteza.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


quinta-feira, 20 de abril de 2023

Rosa sem espinhos [496]

 


Vem,

traz a rosa sem espinhos nas mãos

para te deitares na minha calma de linho.

Verás que as pedras são líquidas

e que delas vão nascer peixes vermelhos

que crescem com as palavras.

 

Vem,

traz a alma descrente na boca

para te converteres na minha fome

a ti consagrada.

Verás que a querença te levará

aos meus braços

de onde brotam banquetes seguros

que vão renascer na praia da vida.

 

Vem,

traz o corpo sem freios na mente

para te deixares invadir da loucura.

Verás que as pedras deixam a carne

e que os peixes voam, enquanto

dos beijos nascem espasmos de luz

a transbordar de seiva

ao abrir a tua rosa sem espinhos.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Ouvir as rãs e os búzios [495]

 


Sabes que as minhas palavras são claras

e que, no seu epicentro,

vivem libelinhas

que fazem amor nos nenúfares.

Na água, as rãs coaxam o teu nome.

 

É também dentro delas que vives

e renasces, interminável,

porque me amas até se quebrarem

todas as algemas das veias.

Nos búzios não há maus presságios.

 

Um dia, que espero distante,

a chama vai perder a cor do sangue

e sairei cabisbaixo do teu tempo.

Serei um estertor caído

pela ordem inscrita nas entranhas.

Até lá, sou eterno

e quero ouvir as rãs e os búzios contigo.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


quinta-feira, 13 de abril de 2023

Naufrágio [494]

 


Enquanto o verão

teima em preservar-se murado a ferro e fogo

pelas correntes austeras do inverno europeu,

importado sem barreiras e acrescido

do zelo oportunista dos vendedores,

ardemos lentamente numa espiral inflacionista.

 

É o tempo do regresso aos atos sem escrúpulos

que rejeitam toda a seiva das plantas

e onde as estrelas vão definhando

numa noite a escurecer a cada espirro do algoz

que nos rouba com descontos milagrosos.

 

Brandos, esbulhados e arruinados,

vamos vivendo com esta religião

que nos vende a felicidade dos pobres,

onde a miragem se vai dissipando lentamente.

 

Resta-nos a cabana da impotência,

envolta pelas cerejeiras a florir ao luar

ou pelas águas de Abril

sem medo de tornar o verde ainda mais verde,

onde podemos ruminar o naufrágio

à lareira baça da nossa indignação.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Neste mundo [493]

 


Neste mundo, apesar de tão concreto,

fico virado para o espelho

do futuro duvidoso

e olho a vida que passa nas raízes

que ardem para iluminar o caminho.

 

Aclaram-se pilares antes obscuros

que seguram brisas oriundas

de paisagens simples

e, das brumas sonâmbulas,

uma visão vai surgindo

a mimar alicerces ao luar.

 

E sinto, então, a verdade do sonho

que vem do nosso próprio mistério:

as nossas mãos

calarão o fogo das raízes

no mesmo espelho

quando não houver futuro.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


quinta-feira, 6 de abril de 2023

Proíbo [492]

 


Proíbo que mexam

nas flores que teimam em nascer

à revelia do exterminador,

determinado em despi-las,

pétala a pétala,

e lançá-las à vala comum.

Também proíbo que transformem

o sorriso aberto das crianças,

que nos fazem sorrir no luto

que carregamos

em luta com o destino à incerteza.

E nem pensem proibir

a minha proibição,

porque ninguém pode impedir

a beleza no meio dos combates

que nos dão,

nem algemar o uso da doçura

como arma contra a guerra

de dimensões tão cruéis

que tresandam a loucura.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023


segunda-feira, 3 de abril de 2023

Há quem dance com sereias [491]

 


Há quem dance com sereias

ao som chamativo do mar

ou com marujos astutos

cuspidos nas marés do bordel.

Em qualquer caso,

abraçam-se e cantam

na sedução enliçada de sargaços

e deitam-se no areal da volúpia.

Não vem mal ao mundo por isso,

mas ficarão desertos

de tanto ardor sem amor

e serão miragens deslavadas

quando a maré recuar.

Ainda assim, persistem

nos breves clamores do desejo,

mas não pisam o lado de lá

das fronteiras do encanto

que há na inocência,

também impúdica, das paixões

indomadas, verdadeiras.

 

© Jaime Portela, Abril de 2023