segunda-feira, 29 de maio de 2023

Ao teu lado [507]

 


Ao teu lado, os meus dedos

têm a forma e a sede das tuas flores,

porque te evoco por colinas e vales,

onde elas se abrem

às carícias famintas do teu pólen.

 

Mas diz-me:

Renascemos, vezes sem fim, condensados

numa simbiose de sol e de chuva?

Morremos na corrente sangrenta

das veias que fraturam o ofício da voz?

 

Sei que me vais responder

com o orvalho da tua carne

ou com a chave

que me deste para entrar no teu coração,

mas eu quero que me respondas

com o fogo e o sangue da fêmea

e da alma de mulher que há em ti.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


quinta-feira, 25 de maio de 2023

A selva [506]

 


Adormeço nos meus pantanais

porque não sou capaz

de ficar eternamente acordado.

Nas mãos,

tenho sempre algumas palavras de pão.

Há crocodilos à porta da raiva

que certas criaturas transportam no sangue

e há ervas daninhas que eu não como.

Nem sequer os animais

delas se alimentam, de resto,

pois desconfio que eles têm sonhos

parecidos com os meus.

E concluo, por isso,

ainda que a dormir nesta malha

pejada de caretas agrestes

e entalado nestes espinhos

de desordenada probatória

tudo seja enevoado,

que há uma selva de crocodilos

que limita os seres vivos

à sua existência madraça, mas veloz.

E que, para sobrevivermos,

não bastam palavras de pão,

temos que andar com facas nos dentes,

lícitas, mas que assassinam

qualquer sorriso nos lábios.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


segunda-feira, 22 de maio de 2023

De entre os teus gestos [505]

 


De entre os teus gestos, que espero,

desespero pelo que me vai ditar

um mutismo temeroso.

Receio, como tu,

que da giesta nasçam vassouras,

que as andorinhas se evaporem

do cerne das ideias,

que ruminemos

palavras de palha comichosa.

Na minha cabeça [e porventura na tua]

esvoaçam sinais

de fogo demoradamente inspirados.

Urge apagá-los,

mostrando-nos finalmente desarmados.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Corujas diurnas [504]

 


Perto das corujas e do verão,

preciso de um trapo na língua

[talvez mesmo cosê-la],

porque elas ouvem o silêncio

e vão querer despertar

para que o cantem à noite.

 

Mas as minhas palavras

são indomáveis,

seja pelas fragâncias

que exalas etérea

ou pelas chamas que irrompem

das minhas raízes

à visão moça

dos teus seios meninos.

 

Insensatos,

somos corujas diurnas

e dás-me o verão do teu colo.

E o fogo sobe, abraçando-nos,

numa fusão insanável,

nuclear, até à explosão

do magma dos nossos sentidos.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Serei mais um dos Cruzados [503]

 


Enquanto dormes,

não quero acordar-te com a voz do coração,

onde tenho um açaime

que é cúmplice deste silêncio

que me atira para as cavernas

com martelos de mineiro nas têmporas.

 

Quando acordares,

ouvirás a terra saciada

a despontar em milhares de flores,

onde as cores do arco-íris se libertam

em tons de violino

para que cantes a abundância

das nascentes do teu ventre.

 

Até lá,

não verei mouras encantadas no Rossio

nem musas a beijar o Tejo de canoa,

serei mais um dos Cruzados sem desígnio.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


quinta-feira, 11 de maio de 2023

Deixei de te ver [502]

 


Deixei de te ver

mas, se me esperas,

há tanto nevoeiro

que as minhas palavras são esgares

de língua cosida

num espaço sem fios.

 

Enquanto eu medito na praia,

não me chames,

estou encoberto por dunas de dúvidas

e estendido no retiro de sal

do limiar das marés que te dão corpo.

 

Na primavera,

vamos descobrir a origem

dos dias que se encarquilham sem vida

como fruto demasiado maduro.

Então,

saberemos reaver

a verdura sedutora do princípio.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


segunda-feira, 8 de maio de 2023

Sei que um dia [501]

 


Sei que um dia ficarás oculta,

talvez pelas águas

que se interpõem poluídas

entre as pessoas mais límpidas,

e que a minha tristeza

será uma escrava de feições silenciosas.

 

Dado que ficarei sem a terra dos meus pés

e chupado pela noite e pelo vazio,

ao sabor do vento a ameaçar-me

e a esquartejar-me a lembrança

de facas doidas em punho,

guardarei, até, os teus cabelos caídos.

 

Mas agora,

que ainda és visível e palpável,

há todo um mar que se agita

com o balanço das caravelas

por entre os teus seios de fogo,

e fico preso às ondas com que agarro

os mapas astrais do teu corpo.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


quinta-feira, 4 de maio de 2023

Avatares [500]

 


Toda a verdura é medrosa e atrevida,

diverte-se, não descansa,

amolece e adormece.

Cobiça e sonha com os sonhos insensatos

que lhe acodem na PlayStation às golfadas.

Às tantas,

desperta cheia de saber e decreta

que o amor e o ódio são arcaicos

ou que as pessoas felizes,

tristes e as outras não existem,

são avatares.

Eu,

que já não sou medroso nem atrevido,

pensando bem, vou mais longe:

sou um avatar feliz,

apesar dos tiros e bombas sem idade

que me atiram.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023


segunda-feira, 1 de maio de 2023

De vassouras empunhadas [499]

 


Ainda existem réstias de luz

na pureza desta pátria tão confusa

que trabalha

que pondera

e que não se alimenta

do ruído das futilidades

que os medíocres propalam.

Mas é a pátria que condena

esta loucura dos palácios,

que cai e se levanta

com as mãos calejadas da labuta,

que se recusa a incendiar o que resta

e está prestes a gritar

de vassouras empunhadas.

 

© Jaime Portela, Maio de 2023