segunda-feira, 26 de junho de 2023

As ideias estremecem [514]

 


As ideias estremecem o bastante

para que se partam alguns fios condutores

que sustentam a razão.

 

Inesperado e permanente,

o caos hospeda-se na lógica dos sentidos:

não resisto

à Padeira de Aljubarrota

que há no sangue que te ferve impetuoso

com a doçura do mel.

 

E as minhas mãos ignoram o sono

como o esqueleto de um barco

que geme

nas ondas impelidas pelo vento inimigo.

 

Sou o adeus à vida airada

mergulhado na insânia

da vontade de te amar,

e sei que ao chegares de asas abertas

não me fecharei na lucidez.


© Jaime Portela, Junho de 2023


quinta-feira, 22 de junho de 2023

Slow mode

Informo os meus amigos que a partir de agora só publico às segundas feiras.

Um abraço.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Dizer adeus [513]

 


Dizer adeus

é inquietude, alívio, ou até desprendimento.

Ou tudo junto.

Olhar no chão e alma apertada

que se espalma nas pedras da calçada.

Mas há a criança que se alheia,

sem adeus, com travessuras,

atravessada pela sua ingenuidade.

 

Dizer adeus,

é coisa estranha

que se entranha em pensamento inquebrantável,

ponte que se quebra

com gente a atravessá-la

de mãos erguidas

para impedir que a vida sangre para o fundo.

 

Por isso,

não digo adeus a nada,

nem sequer às flores por almas secas dobradas.

Inquietado, aliviado, desprendido,

ou tudo junto,

só direi adeus à vida

quando ela me disser adeus.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Não sei [512]

 


Não sei o que há nas bocas do mundo.

Vê-se rapidez e lentidão,

segurança e incerteza, tudo e nada.

 

Nelas, há ternuras irresistíveis

ou esgares que provocam sustos vivos

nas paredes das fronteiras

numa fúria impiedosa na pele de outra cor.

 

Há sempre bocas presentes

nas emoções que sobem da alma,

num salto, aos cumes da vida,

tal como nas tristezas

que gotejam lentamente até aos pés.

 

Mas também há apatia,

real e aparente,

de bocas bem desenhadas.

Há gravatas, há lenços,

adereços que dormem como livros

numa estante da sala,

batons irrelevantes para os lábios.

 

Não sei o que há nas bocas do mundo.

Mas sei que é vida, boa ou má,

o que se espalha, corpo a corpo,

a partir de qualquer boca.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Do cimo do meu íntimo [511]

 


Do cimo do meu íntimo,

visionário e descrente,

tenho a esperança

de que os rios que correm da alma

parem o tempo

e a certeza

de que quando montamos cavalos alados

não percebemos as nuvens.

 

Sei que são os olhos do meu desejo,

ao retirar a túnica das tuas ancas

num gesto sem a espuma dos poentes,

que constroem jardins

com flores de sal.

E que,

depois de tatear a tua rosa de linho,

é real a doçura do mel

no carácter dos teus seios.

 

Por isso, contigo beijarei

a vida como espécie em extinção,

até que dela morramos embalsamados

como amantes.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023


quinta-feira, 8 de junho de 2023

Ainda bem [510]

 


Ainda bem que a vida se agita

e que trocamos palavras

como pedras

em nome da paz.

 

Esta guerra

é bem pior que a dor predominante

no sossego do silêncio,

onde o vazio é contumaz.

 

O abraço pode nunca chegar,

mas a sua iminência

é mais atrativa

que o desabraço desbragado.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Adolescer com asas [509]

 


Quando te debruças                

nas planícies sem vento

ou em vertigens de inquietações,

é da prenhe tranquilidade

que nascem carícias ou apelos,

no corpo ou na alma, em ti.

Do meu outono, és uma primavera

tão sensual a enfeitiçar-me

que o meu coração se arruína,

cresce e renova no vinho do céu

destilado por ti, e que circula por mim,

tornando a minha carne desperta.

E vou fugindo ao inverno e ao frio

no adolescer com asas

que sempre que há vento ou vertigens

da minha boca voa para ti.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Recém-nascido [508]

 


Ouço um piano,

pianíssimo,

tão baixo que apenas ouço

a respiração das sílabas tónicas.

 

Alguma serenata

à vizinha do 1º esquerdo,

penso eu, pois a noite

já cresce no dia subtraído.

 

Mas o piano enfurece-se

e até as sílabas átonas aborrecem,

ressoando agitadas e sem nexo

nas galerias, nos muros

e nos átrios do meu cérebro.

 

E eis que sou uma nau a balançar

no meio de procela adamastórica

a passar no Cabo da Boa Esperança,

de tormentas e naufrágios atulhado.

 

E quando o mar já entra pela amura,

acordo.

Mudam-me a fralda. Ao lado,

um palerma a jogar no telemóvel.

 

© Jaime Portela, Junho de 2023



PS: no Dia Mundial da Criança, e não só, a poesia também pode servir para os adultos brincarem. E nem é dia do meu aniversário...