segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Mesmo a dormir [549]

 


Mesmo a dormir, não durmo,

grita o desassossego de vidro riscado

a rasgar o núcleo do corpo

onde existia a ventura.

Destruo e reconstruo as molas do desacerto,

lavo as dores com as marcas dos dentes

enterrados no dorso

e vou matando os vírus que crescem no teu vazio.

Restauro o propósito,

sempre escasso,

para a travessia dos dias e da distância

que me separam de ti.

Mais de mil vezes teimando,

qual suplício de Tântalo,

recolho cacos, perfumo a dor

e crio novas pontes de concertação,

que vão caindo,

uma a uma,

pelo teu estado sem planos de salvação.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A corda na garganta [548]

 


Pelas palavras,

sinto um desamor exagerado.

Elas raramente relatam fielmente o pavor,

a demência ou a emoção.

Não tenho palavras para a tua ausência,

há uma muralha

que a minha caneta não derrota.

A tinta torna-se permanente e invisível.

 

Não tinha palavras para a tua ausência,

mas voltaste e emanas a luz que faltava.

E as palavras regressam alegres

quando acendo o teu corpo e a noite se apaga.

Mas o temor de fugires

é uma corda que me aperta na garganta

e só respiro quando me estrangulas

com o teu corpo aceso de amor.

 

                © Jaime Portela, Fevereiro de 2024

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Alegre e triste noite de Carnaval [547]

 


Como se algas

me segurassem as pernas abertas

e a luz de um farol

me perfurasse como cem agulhas

que persistia

num formigueiro à flor da pele,

vi-me deitada numa passadeira vermelha

de um bar sem janelas

para onde me tinham atirado.

Nada sabia sobre as mãos que me feriam

e me dissolviam a força para resistir,

nem das pancadas da música

a pulsar em sintonia diversa do coração.

Tenho somente este corpo,

esta alma,

que não sabem dar-se quando não há amor,

uma fé que apenas resiste

quando acredita no próximo.

Nada sabia,

mas depois de ter sido abusada,

violada sem dó nem piedade

numa alegre e triste noite de carnaval,

fiquei a saber que há mãos

que assassinam a fé e o amor.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Há palavras [546]

 


Há palavras

que se perdem engolidas pelo tino,

não vá o diabo tecê-las

devolvendo-as em borbotões azedados.

Se delas nada se ganha,

é inútil lançá-las à cara do vento,

afrontosas,

na esperança de tecer abraços

quando a tempestade se agiganta.

A sensatez nas palavras

é uma raiz viva que nos permite sobreviver

nos declives escorregadios do instinto

ou da desordem sem retorno.

Fujamos das palavras imprudentes,

ditas frontais,

onde os olhares se esbanjam,

de soslaio, num horizonte sem luz

de palavras feridas por excesso

ou por gritos inúteis sem ensaio.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024