segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O canário [575]

 


No silêncio dourado da gaiola estreita

o canário eremítico canta a sua poesia,

as asas ansiosas buscam a liberdade desfeita

só que estão aprisionadas numa cruel agonia.

 

O trinado é um lamento, uma súplica silente,

pedindo aos céus a graça de voar além,

mas o voo é contido e o ânimo é carente,

está preso nas grades que lhe deu alguém.

 

Pobre canário na gaiola, símbolo da tirania,

as suas penas amarelas sonham com o azul do céu.

Que triste sina a sua, tamanha dor, tão fria,

 

cantar aprisionado, perdido num cativeiro cruel.

Que um dia, a gaiola se abra de par em par,

e o canário, então livre, possa finalmente voar.

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2024


segunda-feira, 19 de agosto de 2024

A nossa história futura [574]

 


A nossa vida é uma cadeia de elos

que se entrelaçam,

tecendo uma tela

onde a vontade e a sorte

vão desenhando os seus contornos.

 

Em cada passo,

uma dança de esperança ou desalento,

num ciclo único e irrepetível

de um todo

com miríades de diferentes histórias,

sonhos, conflitos e modos.

 

Seres conscientes

e responsáveis

por tecer a nossa própria história,

devemos ter em conta

os recursos e os outros seres,

sejam homens, animais ou plantas,

porque é deles que depende

a nossa história futura.

 

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2024


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Ignorar mistérios [573]

 


Vem,

eu desvendo-te o lugar misterioso

onde as nuvens

tocam o cume do que sentimos.

 

Um lugar onde a chuva não nos molha

e a seca não existe,

onde as searas ondulam

conforme o nosso querer.

 

Um lugar onde nem precisamos sonhar

para voar sobre as aldeias

e atravessar as fronteiras de nós.

 

Vem,

quando sentimos os encantos da vida

passamos a ignorar os seus mistérios.

 

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2024


segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Caíste descalça nos meus braços [572]

 


Num refrear de acenos afetivos

a desembarques no cais,

envolta por um queixume teimoso

de uma nortada homicida,

desceste pela escada portaló

como quem erra e aterra

de asas quebradas na vida.

 

As investidas das vagas

faziam estremecer parábolas de amor

e os olhos, ofuscados pela luz,

sorveram degraus

a baloiçar na superstição

do primeiro pé a pisar o cais.

 

A descida, ondulante e sinuosa,

parece ter antecipado

o detonar do riso de amor,

até então à espera na orla do horizonte,

quando o salto do sapato se prendeu

e caíste descalça nos meus braços.

 

O salto e a dúvida desapareceram,

afogaram-se nas águas bentas do mar.

 

 

© Jaime Portela, Agosto de 2024