segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Concentrado [457]

 


Concentrado,

com a agitação e o sossego de um ladrão,

mas também com a subtileza da raposa,

gosto de atravessar

a sensibilidade das portas da imaginação,

onde há peças, furtadas à realidade,

que se compõem como puzzles dançantes.

 

Sempre diferentes e sempre iguais

[tal como nós,

genomas distintos dos mesmos genes],

eles são o produto de uma arca criadora,

tão absurda quanto lógica,

onde há ventos sensuais,

velas de panos latinos,

corredores labirínticos

e até janelas para outros mundos.

 

Ligo as luzes de navegação

e os frescos dos cenários

têm asas nos papéis de cada peça,

pintam-se das cores mais ousadas,

trocam de posição,

encaixam-se,

misturam-se e,

em cada segundo,

há vários episódios que começam e acabam,

numa festa contínua de emoções.

 

Mas os puzzles amotinam-se

e perco o domínio de ladrão e de raposa.

Sou já eu uma das peças do caos da imaginação

[sem saída, com a porta agora fechada]

e tudo acaba e começa

quando o puzzle se faz de duas peças apenas:

eu e tu, enzimas recíprocas.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

A crueldade do fim [456]

 


Vais caindo no mar e o mar em mim,

malvado ocaso,

ineludível reflexo da beleza

que se esgota como o eco

da guitarra que vai perdendo

a trinada aflição das suas cordas.

 

Depois do fogo, não quero beijar a noite

nem caminhar perto da seara,

onde já não há trigo

nem mão para o colher

e os instantes

já não se agarram à terra que os pariu.

 

Vão morrendo as asas

e o cálice da voz decai

por entre as cortinas que vão obstruindo

a visão do barro poente.

 

E vai morrendo a flor do desígnio,

a nitidez da ideia,

até que tudo quase nada represente

e se desfaça a luz na crueldade do fim.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Imagina [455]

 


Imagina

que as minhas mãos se moldam

nas formas que tens furtivas

e que do seu ar regressam cheias,

ainda que de ti nada saia

nas minhas mãos.

 

Imagina que és tu

que te perdes no meu corpo

e que és um pássaro de fogo

que se banha e morre no meu sangue,

ainda que saibas

que vais renascer nesse voo.

 

Então,

eu preciso de ser imortal,

preciso de morrer como um Deus

para que tudo se cubra

de um momento supremo,

preciso de te esfregar

nas pedras do desejo para que sejas

a acendalha do que te digo.

 

Os ventos,

onde semeaste a leveza gaiata da carne,

empurram-nos lentamente

para o corpo da utopia imaginada.

Também conspiram,

acotoveladas por esses ventos,

a música que nos tinge o enlevo

e a natureza que se liberta de nós.

 

É por isso que nos destruímos

e construímos

persistindo nas mãos e no corpo,

que renascemos nos ventos adversos,

que nos preservamos

num amor tão punitivo como a vida.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O desejo [454]

 


Tão inculpado como o rio,

tão imenso como o mar e como a vida,

o desejo

é uma abstração do espírito

reduzida à coerência animal do instinto.

 

Pinta de cores garridas

qualquer noite e,

porque é do sangue a borbulhar

que vem o fogo, procura rachar

e queimar com ímpetos febris

qualquer inércia

até que as estrelas

rebentem em brilho na pele,

até que as árvores caminhem,

até que os braços da Terra

fiquem insanos

e tudo seja lava

a incendiar as últimas pedras

para que nada escape à inocência.

 

E é com os meus olhos postos

no teu alvoroço

que eu sinto como és bonita,

que eu vejo como és a eterna pureza

e a gota de água

que enche o rio e o mar

da minha vida em concreto.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Os líderes que eu temo [453]

 


São esses

os líderes que eu temo.

E aos que os seguem, discípulos.

Uma procissão de crentes

que esboça planos para a morte,

sem pestanejar um gesto de amor,

com a convicção hitleriana

de criar o Homem Novo.

O cortejo

ocupa todo o espaço disponível.

É gordo, nada sobra

a não ser a esterilidade do medo,

de onde não querem que ninguém saia,

onde não há luz

nem água para as sanitas.

Foram cortadas,

para que não se invente

a forma de escoá-los como merda.

Mas esquecem-se da água

que há no olhar infravermelho do povo,

que, quando quer, sabe como fazer luz

e puxar o autoclismo.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Ao mesmo tempo [452]

 


Ao mesmo tempo que a tua pele crê,

obediente,

nas carícias e na bondade dos gestos,

vacilam os amparos da razão

e é a emoção que se infiltra no sangue

e se espalha até à pele como um polvo.

 

A pele, então, deixa de acreditar

em todo e qualquer gesto

[não interpreta,

lê a exaltação impressa em cada toque]

e passa a ser roda mandada

pela energia da embriaguez do teu sangue

e roda mandante

do resto do teu corpo.

 

Depois disso,

é a engrenagem louca do sentir,

onde todas as rodas,

simultaneamente mandadas e mandantes,

acrescentam desordem à desordem

a cada pulsar do teu peito.

 

Tens a idade da resina

e o aroma dos rebentos da videira.

E o meu canto

tem nos lábios a ternura dos teus seios,

a essência do teu rosto embriagado

e a textura da resina molhada

no orvalho dos rebentos do teu corpo.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Como a formiga [451]

 

Como a formiga,

que arrasta mais que o seu peso

e mais que o seu volume

por carreiros sinuosos,

tropeço

e luto

contra o tempo e o hábito.

 

De vez em quando sou pisado,

mas a sorte

e o engenho

ajudaram-me a escapar,

até hoje,

no intervalo ou nas ranhuras

das patas do inimigo

ou dos pés do distraído.

 

Recolho

ou abandono

os destroços da carga

conforme os estragos

e prossigo a luta

obrigatória

para me abrigar

antes que a noite caia.

Ou a chuva.

 

E emboloreço,

no tempo e na espinha,

no prazo

e nos estorvos dos caminhos.

 

Se a vida é um atado de curvas,

o amor é um embrulho

já quase indesatável,

que não mereço,

mas que não esqueço.

 

E há trilhos,

agora tão íngremes,

que antes eram subidos

como se fossem descidas,

que se assemelham

a paredes intransponíveis.

 

Mas ganhei asas,

porque há subidas evitáveis

e fardos

que não vale a pena carregar.

Assim, apenas assumo

as curvas e os embrulhos.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022