quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O comboio da utopia [204]



Tecendo a maré, deambulamos
pelas nossas fantasias
a colorir sonhos de nuvens.
Embriagamo-nos
nos vapores de uma ilusão,
à chuva de um sorriso
num comboio com o freio nos dentes.
Pegamos numa estranha mão
e já o abraço é conhecido,
com o comboio, desgovernado,
a fugir-nos fora dos carris.
Inebriamo-nos com a aparência
de um sol, com o cérebro enganado
a apitar de alegria que nem um desalmado.
Navegamos nas águas
dos nossos devaneios
ao comando de um barco sem leme.
Afundamo-nos dentro do sonho
e caímos redondos, enganados,
sucumbimos ao naufrágio,
perdemos o pé na maré que tecemos.
Pouca terra, pouca terra,
será sempre pouca a terra firme
nos carris do comboio da utopia.


© Jaime Portela, Dezembro de 2018


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Há sempre [203]



Há sempre um resto de noite
no caminho que se abate,
em névoa, a cada nova madrugada.
Há sempre um resto de tédio
inevitável que se imola, suicida,
no reparo da alvorada.
Há sempre detritos de sonhos,
em cada página, que se espatifam
antes do parto, no nada.
Há sempre lixo, do antes,
na via triste ou alegre
do hoje vivido ou sentido.
Há sempre rostos de nós
por toda a pátria não resolvida
de vontades teimosamente apátridas.
E há sempre um enorme vazio,
buraco negro de fado agoirento
dos sonhos não abarcados.



© Jaime Portela, Dezembro de 2018


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Por entre risos [202]



Por entre risos de champanhe
da nossa conivência delatores,
assalta-me, na lareira de fogo,
o calor do teu olhar.

Na vertigem da árvore de luz,
aconchego-me numa consoada
com lembranças e desejos
de uvas passas.

E vou perdendo as mãos
a acrescentar pauzinhos
na fogueira do teu corpo.

Por fim, num mar de estrelas,
saboreio, na tua voz distinta,
a cereja no bolo-rei do desejo.


© Jaime Portela, Dezembro de 2018


quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Fotografia [201]



Fotogénica, posaste
de sorrisos sinceros maquilhada
a olhar o passarinho.
Em gestos de formiga diligente,
captei a tua imagem
no papel da nossa fantasia.
Com as mãos,
dei luz às palavras e ao desejo,
colori os beijos que me deste.
Agora, quero focar
o teu olhar semicerrado,
ouvir os teus gemidos
na câmara escura
iluminada pelo teu corpo molhado.
Depois,
quero abrir lentes, portas e janelas,
gritar, dançar, cair para o lado,
morrer aos teus braços revelado.



© Jaime Portela, Dezembro de 2018


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Espero-te no silêncio [200]



Espero-te no silêncio do sol-posto
antes que o luar faça ruído.
Armado de ternuras,
por tremuras meio desarmado,
aguardo-te para a valsa da noite
no aconchego de um pas de deux
há muito reprimido.
Ficarás nas palavras dos meus braços,
protegida, rodopiando num carrossel
vertiginoso e suave,
a centrifugar a mágoa
que teima em bailar nos teus olhos.
Voaremos quietos na valsa da noite,
depurados de loucuras e dilemas,
evitando que o luar ensurdeça
o sol-posto do teu silêncio.


© Jaime Portela, Novembro de 2018


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Quando há mel [199]



Quando há mel
a flutuar nos teus encantos,
há cantos de musa
que embriagam, que sustenizam
cada uma das estrelas de fada
que saltam
da tua varinha de condão.
Há murmúrios encantados
que te devassam,
que latejam, obscenos,
num louco desejo de te habitar.
E há um corpo mandado,
espontâneo,
a dançar em bruto no sangue
que ferve o suor da tentação.
E há uma fonte, irreprimível,
a derramar-se no íntimo
do vaso de mel da tua agitação.


© Jaime Portela, Novembro de 2018


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Dois poemas [198]



Vens comigo?

Vens comigo?
Temos barcos aportados
e um já a bolinar, atrevido,
pronto a partir
do lado do coração, desenfreado.
Outro, na outra banda,
ainda preso ao cais da razão.

Na partida, navegaremos
atrevidos e tímidos.
Depois,
seremos um carrossel movido a beijos
a acelerar como silvas
ou uma montanha russa
a parir um rato.

Mesmo não sabendo qual o destino,
repito, vens comigo?


Escuto no silêncio

Escuto no silêncio
os nossos beijos,
que perduro e revivo
sem descanso nos teus olhos.
Saboreio a tua voz,
que me amanhece,
à espera do teu corpo
no porto do teu canto,
que me enlouquece.


© Jaime Portela, Novembro de 2018


quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Poesia ilusionista [197]



O olhar cego na visão
impenetrável para além dos muros
que a cercam,
mas a acreditar na baforada de luz,
apesar da noite que espreita.
O pentear de rios nas margens,
agitando remansos na floresta
da fantasia construída
pela sedução do seu corpo, num duelo
de memórias com dedos de paixão.

A torrente de lava,
bola de neve silenciosa,
molhada pela chama
que lhe desvenda os olhos de prazer,
no desejo incontido de fêmea
no auge de um cio embrulhado
num estímulo que a penetra,
que a desatina
até ao orgasmo arrebatado
de palavras com rima.

Ah poesia ilusionista,
nada inventas,
és apenas a ficção da realidade.


© Jaime Portela, Novembro de 2018


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Recuso-me a morrer [196]



Do tempo,
que morre e me despeja neste mar
de um só sentido, sou náufrago
quase sem me descobrir.

Mas vislumbro janelas
a florir para além do horizonte
da gaiola das memórias,
inundadas por esguias certezas
que flutuam na aridez
a abarrotar de chuva evaporada.

Recuso-me a morrer,
preciso de tempo para me descobrir
nas janelas de vida
que me acenam e sorriem do futuro.

Por isso, exijo
que alguém me retire tempo antigo,
varrendo memórias não sentidas,
sem interesse, obsoletas,
e que agora mo devolva por usar.


© Jaime Portela, Novembro de 2018


quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Do nosso muro de Berlim [195]



Quando partimos,
a solidão fica maior do que pensávamos
e sofremos com a saudade
sem a sabermos pintar com palavras.
Apenas sentimos que ela mora trasvestida
no silêncio do corpo, golpeado de passados
que se avivam, que revolvemos nas insónias
pejadas de perguntas idiotas.

Mas sabemos que, no regresso, ouviremos
estrondos de grilhetas rebentadas
na libertação do escravo
que prendemos dentro de nós.
E que, na reconstrução, voltamos a ser
pedra sobre pedra, matando a sede,
destruindo fraquezas
infiltradas nos ossos das convicções.

E que, ao colocarmos flores
na barricada que nos protege,
somos de novo czares ou czarinas
sem proletariado ou histeria nazi.
Renascemos com a queda
do nosso muro de Berlim e, da ausência,
não haverá mais arame farpado na mente.


© Jaime Portela, Outubro de 2018


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A uma prostituta [194]



Não quero o teu corpo comprado
numa cama limpa, sem vida, sem beijos.
Do teu sangue, não sentiria a desordem,
apenas o ruído equivalente.
Nem da tua carne beberia a sede
ou o galope de corcel desenfreado.

Serias virgem em chamas simuladas
não ateadas pelo meu fogo real.
Serias atriz cronometrada
enquanto eu,
artista principal,
te possuía com um papel secundário.

Tal como tu,
não te quero. Nem te conheço...
E, mesmo assim, eu gosto de ti.
Eu sei, não podes ser diferente.
Nem serias prostituta
com tanto homem na mente…


© Jaime Portela, Outubro de 2018