Translater

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Da beleza da gravata ao esplendor do verniz [294]

 

Vejo, por vezes, o desconcerto

do insustentável mau trato da língua.

Então, porque o descuido que destroça a palavra

é distinto e redito,

imagino a vanidade do remo sem água

nos que se deixam molhar até à medula

com a chuva de tolices estampadas,

enquanto contemplam, acéfalos,

o remoinho do regurgitado.

 

Não há horas felizes nessa bravata de gargarejos,

onde o poema, ferido,

se contorce com vários trejeitos

[ouvindo aplausos à  beleza da gravata

e ao esplendor do verniz]

à espera que o saber da palavra construa, enfim,

o sustentável bom trato do verbo.



quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Neste cais do desespero [293]

 

Na praia da nossa rebentação,

construí um cais equipado com espanta nevoeiros,

draguei um ancoradouro sem baixios

e levantei um farol para afugentar os naufrágios.

Tive ainda o cuidado de espalhar argamassa no areal

para que a nossa fortaleza não se desmoronasse.

 

Dei-te bússolas e cartas mareantes,

assinalei o penedo ladrão com uma boia vermelha

e engalanei com bandeiras coloridas

os mastros que havia no cais.

Tornei o teu porto de abrigo um lugar demarcado

e aguardei a tua chegada com a maré.

 

Nunca chegaste.

Mas é melhor que não chegues, deixei de te esperar

e de rezar ao Senhor dos Mareantes.

Demoli a fortaleza, o cais e o farol,

afundei a boia vermelha e rasguei as bandeiras.

Mas, se chegasses, reconstruiria tudo para ti

neste cais do desespero.



quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Em ti [292]

 

Em ti, há fascinação,

que se liberta em forma de asa delta

e me dá o suspenso esvoaçar

para beijar em sobrevoos de carícias

as planícies e os vales do teu corpo.


Há também adolesceres

que os teus braços me emprestam

e me impelem a pintar danças perfeitas,

a transbordar cristalinas

na quilha do teu bote em que me deito.

 

Sim, nem sempre

as asas hipotecadas no amanhã

quebram os sonhos do voo

ou apunhalam a voz da atração

mergulhados e vivos no agora.



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Do sal das formigas que produzem [291]


Do tempo,

de um Homem que gasta o olhar

entre o melhor de ontem e o pior de hoje,

temo a ausência do desígnio do amanhã,

porque tudo é pessimismo amplificado

pelo eco informativo espalhado aos quatro ventos.

Do espaço, 

das Nações entretecidas

em fumos de antítese permanente,

temo a perda da noção do que não é fogo-fátuo,

porque quase tudo o que nos dizem é espuma,

que apenas se esvai

a cada nova onda de espuma.

 

Recuso respirar a perda de tempo

que há no vento do pessimismo

e não quero banhar-me na falta de espaço

que há na rotina da espuma.

Do tempo real, prefiro o optimismo

que há no ar que as flores respiram

e o espaço temporal da verdade

que há no sal das formigas que produzem.