Translater

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Toupeiras voadoras [583]

 


No ventre escuro da terra oficial,

tão fundo, tão silencioso,

as toupeiras cavam os seus rumos

num mundo secreto e misterioso.

 

Sem o brilho das estrelas jornalísticas

nem o calor do sol auricular, elas conversam,

em sigilo, onde a vida não gira,

é a mentira no escuro das palavras ocultas.

 

Com as suas garras miúdas,

desenham no subsolo os projetos da vitória,

rasgando o terreno em linhas curvas

como se descobrissem o céu.

 

E sonham, quem sabe,

com um paraíso onde o vento corre livre

e sempre de feição,

deixando o inimigo numa ilha deserta sem luz.

 

Mas, se pudessem lançar-se

no voo que ambicionam e desconhecem,

os ratos-cegos do poder

talvez se perdessem nos céus.

 

Mas o voo das toupeiras

nunca será como o dos pássaros,

é um mergulho para dentro,

e armadilhar é o inverso de sonhar.

 

Entre raízes egocêntricas e pedras falaciosas,

desenham o seu destino

no silêncio profundo da maquinação,

onde o mundo não é divino.

 

E assim vivem as toupeiras voadoras,

numa dança privada e negada sem fim,

não no céu aberto e livre das aves,

mas no voo das catacumbas, porque sim.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2024


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

A política nas redes sociais [582]

 


É no ruído primário

sobre ideias fanáticas

que mascaram

o apocalipse da esperança

que o desespero investe.

 

E a reprodução giratória

faz crescer pela ressonância

o ímpeto e a vulgaridade

das palavras perversas

e insultuosas

dirigidas aos rivais.

 

E nem doutorados com borla

se esquivam à mixórdia,

onde ser fogo e ser queimado

se confundem.

 

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2024


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Manteiga nos versos [581]

 


Quando o motim interior

se plasma num mínimo poema que seja,

a pauta normalizada é distorcida

pela torrente encorpada

a deslizar por entre fragas mandantes.

 

O cortejo de palavras dispensáveis

naufraga ou desmantela-se

contra as pedras do caminho

e jazem agoniadas por ação da borracha,

que as elimina e empurra

para a periferia do papel.

 

E ficam, quando há talento,

apenas as palavras precisas

para que o motim se revele

sem distorções nem empecilhos,

ainda que leituras possam reclamar

mais manteiga nos versos.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2024

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O populismo [580]

 


A infeção,

sem a lavagem que a centrifugação

dos pensamentos primários poderia fazer,

provoca um turbilhão já previsível.

 

As elipses pintam as parábolas

em círculos alegóricos,

que descem impressivas,

e é preciso um chapéu de sabedoria

para filtrar o trigo do joio.

 

Mas há sempre alguém

que se enamora pela chuva antropófaga,

numa atração por abismos de proposições absurdas

onde o livre arbítrio adoece.

 

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024


segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Suplício de Tântalo [579]

 


No frondoso vale, Tântalo desespera

e, nas trevas do castigo, a sede é uma tortura.

A água, fugidia, em vão ele procura,

e a fruta ao seu alcance, foge-lhe, severa.

 

Em tormento perpétuo, a alma desfalece

nas margens do rio que lhe nega o alento.

Na fome voraz, a sua vida é um tormento

num ciclo cruel que jamais se emudece.

 

Sob o peso do céu, em cruel suplício,

Tântalo sofre condenado ao sacrifício

e é forçado ao martírio sem redenção.

 

Assim, entre o desejo e a realidade,

o suplício de Tântalo ecoa na eternidade

como símbolo presente da humana condição.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Neste vale à concertina [578]



O que me vale

é este sol que não me queima,

a bordalesa deste Lima a verdegar

e a serenata das Festas da Senhora da Agonia.

 

O que me estraga

é a lampreia a nadar em vinho verde,

a chieira das mordomas de peito dourado

e as caldeiradas bem regadas na Ribeira.

 

O que me encanta

é a chuva abençoada no verão,

a vaca das cordas que estranhamente não escorna,

as papas e o sarrabulho limianos.

 

O que me salva

são as moçoilas das veigas da Areosa,

de Santa Marta, da Meadela ou de Carreço,

que dançam melhor o vira de socas

que as bailarinas do Bolshoi de meias pontas.

 

O que me engorda

é a broa, a sardinha e o cozido à portuguesa,

o bacalhau que já não é da nossa seca

e tudo o que é bom e que faz mal.

 

O que me adoça

é a torta de Viana em qualquer lado,

as Bolas de Berlim do Natário

e o pão de ló que o Jorge Amado amava.

 

O que me enleva

é este Minho sempre verde

no vira que não vira na amizade

e já não vira varapaus às bordoadas.

 

O que me dói

é este mar que é um cemitério

de pescadores que não voltam

deixando órfãos e viúvas sem amparo na Ribeira.

 

O que me alegra

é o canto aguerrido ao desafio

de Barreiros e Canários

que abundam neste vale à concertina.

 

O que me inspira

é o pegar das palavras pelos cornos

mesmo ditas sem capa nem espada

sem trompetes nem passo dobles

das noites de tertúlia no Taurino.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Réquiem pelos ENVC* [577]

 


Entre as leiras da Areosa

e o pacato rio Lima,

entalado pelo mar

contra o Campo da Senhora da Agonia,

com a descurada visão de Santa Luzia,

o trabalho era porco, pesado e perigoso.

 

Mas saíam navios pela barra

como filhos ingratos que jamais regressariam

à casa onde deixavam os pais,

alguns mortos e muitos vivos.

 

Houve o tempo, já esquecido,

dos rebites cravados a fogo de carvão.

O tempo da escravatura dos balões

que mandavam operários para casa

de mãos a abanar

sempre que chovia ou o trabalho diminuísse.

 

Houve o tempo do traçado das curvas do navio

desempoladas de joelhos com virotes,

como quem reza,

até que os computadores pusessem fim

a tão sacrificial religião.

 

Houve o tempo da surdez por tanto ruído

e das doenças dos pulmões,

até que surgissem máscaras e tampões.

 

Houve o tempo do trabalho descalço

e das quedas dos andaimes geringonças,

até que chegasse calçado seguro

e andaimes sem pranchas já podres.

 

Resistimos à loucura de patrões

e à dança de cadeiras mancas

que a revolução pariu.

Resistimos à queda do Escudo

porque fomos salvos pela queda do Escudo.

 

Até esperamos por Godot,

mas nem Beckett nos ouviu,

não resistimos à inaptidão infantil da gestão

nem ao malandro arbítrio do poder.

 

 

© Jaime Portela, Setembro de 2024

 

 

*ENVC – Estaleiros Navais de Viana do Castelo – dedicava-se à construção e reparação navais. Há cerca de 10 anos, foram despedidos todos os seus trabalhadores (mais de 600). Venderam os equipamentos a uma empresa que iniciou a mesma atividade pagando um aluguer mensal quase simbólico ao Estado (proprietário do terreno).

Da queda do Escudo (moeda portuguesa da altura): um contrato de 1972 ou 1973, para 2 navios químicos com cerca de 180 metros de comprimento, foi feito em Escudos, que começou a desvalorizar-se logo de seguida. Foi um desastre, o dinheiro recebido para os 2 navios foi necessário quase todo para o primeiro. O prejuízo levaria à falência se não fosse a nacionalização da empresa. Meia dúzia de anos mais tarde, foi assinado um contrato em dólares para 2 navios para o Brasil de dimensão idêntica. E como o Escudo continuava a desvalorizar os lucros foram enormes (1 dólar, de 40$00 no início, estava a 140$00 no final).