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segunda-feira, 30 de junho de 2025

Tudo é alegre e solidário [622]

 


Tudo é alegre e solidário

no âmago das nobres almas felizes

na festa que não dura mais que uns vapores,

enquanto as palavras,

que parecem sentidas,

tentam seduzir a indecisão dos calados,

tida por timidez.

Na contradança festiva,

empolgada na repetição dos slogans

e nos vai-acima vai-abaixo do jantar,

há sempre uma ligação etilizada

entre os altruísmos e os digestivos

e são inúmeras as intenções

que padecem das metáforas dos copos

ou da redundância da sede.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 23 de junho de 2025

No palácio [621]

 


No palácio

não há assento para todos os deuses políticos

que se rejeitam uns aos outros,

que procuram o poder

com ideais que vão caindo no estrume

se ainda não o são.

Sem limites,

cada um promete tudo a todos

e a coerência e a impossibilidade

são assobios e pios inaudíveis

que passam ao lado das caras de pau

que fazem simulando uma visão que não têm.

E nós desfrutamos da festa

na comunhão das promessas de um dos deuses.

Ou viramos as costas a todos

à espera que D. Sebastião

chegue numa manhã de nevoeiro

ou porque preferimos lavar as mãos como Pilatos.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 16 de junho de 2025

O reino dos céus [620]

 


Feliz quem não quer mais da natureza

do que aquilo que ela lhe dá,

como o camponês,

que vive do instinto e da tradição agrícola,

que se satisfaz com o que o tempo lhe dá

alicerçado na intuição e na dedução.

 

Feliz quem se encanta

na observação da vida alheia,

vivendo um espetáculo virtual,

como o espectador de filmes

que vive da fantasia e, enquanto tal,

esquece a vida real.

 

Feliz quem renuncia a tudo e a quem,

porque a tudo renunciou,

nada se pode roubar,

como o eremita

que foge da vida e, enquanto não morre,

passa o tempo a dormir.

 

Todos abdicam

de parte da sua individualidade e,

porque o fazem, conscientemente ou não,

são mais facilmente felizes.

 

Para não falar dos pobres de espírito,

esses sim, são inconscientes mas felizes,

ou não fosse deles o reino dos céus…

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Aprendizagem [619]

 


Quando desvio

o olhar demorado de uma imagem,

recebo a violência do sol na retina.

Magoa-me e queima-me

ver o deslustre e o embuste externo de mim.

 

Escorrego e caio

nos imaginados afetos e apoios

quando os passos dos outros,

dessincronizados dos meus,

me induzem num abismo desprotegido e vão.

 

Ainda vivo,

quase morro na sombra desagradável

de artes emaranhadas

que a próxima aragem dissolverá

e a noite talvez ilumine os seus vestígios.

 

Os contrastes ferem-me,

mas alimentam-me no doloroso calvário

do meu crucificado aprender.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Chalaça doméstica [618]

 


Escravos do brilho e da cor,

dançamos na verdade e na mentira.

Se não dançamos,

não sabemos do gelo intenso

que há no cimo das montanhas

ou do calor sufocante

no meio dia do deserto.

Mas dançamos e,

sob as vestes,

temos um corpo mortal que resiste

a tudo a que, sozinhos,

pensamos fazer frente,

mas que não é senão

a chalaça doméstica

da verdade em que nos cremos.



© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Decadência [617]

 


Para os populistas, os outros

(minorias, imigrantes, partidos)

são os construtores da desgraça.

E a mentira penetra na memória coletiva

como água que caia na areia.

 

Os fabricantes de notícias sensacionalistas,

em nome de audiências,

distorcem factos ou insinuam

e usam os populistas.

Informar é secundário.

 

A decadência alastra-se,

dizem e mostram o que queremos ouvir

como quem dá guloseimas às crianças.

 

Aflitas,

as exceções vão perfilhando a mesma estratégia.

 

Na febre da ficção, todos se convencem

que para se atingir o êxito

basta haver um ponto fixo, a mentira,

e partir dali a toda a brida para o poder.

 

Se o povo fosse sábio… outro galo cantaria.



© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Vítimas submissas [616]

 


Quem pretenda fazer

um inventário de aberrações,

bastará fixar em vocábulos

a irrealidade que o sono inventa

em noites de insónia.

Essas ficções

têm o absurdo dos sonhos

sem a desculpa do sono profundo.

Adejam como aves agoirentas

à volta da inércia do espirito

ou como mosquitos

que adormecem o nervo da recusa.


 

© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 12 de maio de 2025

Encarcerados [615]

 


Agarramo-nos à vida e não queremos a morte

e procuramos algo que cintila

no íntimo do desejo

como um tesouro de paz a flutuar

num céu onde não sabemos chegar.

 

É o fardo e o dissabor

do mundo que vemos e não vemos,

num firmamento embandeirado

de armas visíveis a olho nu

e na multidão de notícias

que vão enfraquecendo pela repetição,

de onde o minguante da pacificação

assoma como a candura estática da lua,

distante e apática.

 

E é assim que sentimos

a ausência de um Deus que nos valha

e nos liberte desta subsistência de guerra,

um Todo-Poderoso,

porventura distraído,

na imensidão de um céu incomunicável,

enquanto continuamos encarcerados numa prisão,

sem dela, nem Dele, podermos fugir.

 

 

© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Se não sonhasse [614]

 


Se não sonhasse,

o existir num imperecível desprendimento

poderia apelidar-me de idealista,

ou seja,

alguém cujo mundo extrínseco

é uma nação apartada.

Não sou catalogável,

já que apenas tenho em mim

o saber do prognóstico só no fim do jogo,

porque transporto no sangue

os glóbulos que desconhecem a previsão.

Mas continuo a sonhar,

é qualquer coisa como a obrigação

de fazer do sonho uma constante,

porque gosto de assistir a um bom desempenho

sendo eu a testemunha do que faço e penso.

Na verdade, é dos sonhos que me edifico

em casas e causas imaginadas,

vistas incertas, quadros datados ou futuristas,

num sonho contínuo

produzido entre matizes de arco-íris

e à sombra de aplausos impercetíveis.

 

 

© Jaime Portela, Maio de 2025