Translater

segunda-feira, 17 de março de 2025

O jogo da vida [606]

 


Num naipe desconhecido,

porque o baralho é descomunal,

somos uma das cartas

cujo valor comparado ignoramos,

a menos que sejamos atletas.

 

A comparação é impossível,

somos quase cegos com dúvidas

e não conhecemos o jogo dos outros

por não sabermos se fazem bluff

ou se dizem a verdade.

 

Vamos, então,

tomando as imagens por realidade

ao ponto de suspeitarmos

se o que somos é uma representação

de uma outra identidade.

 

E é com a incerteza dos trunfos

da ficção que nos acompanha

que o jogo continua de facto,

mas sem prognósticos fiáveis.

 

 

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 10 de março de 2025

A felicidade [605]

 


Resignação é submissão,

é desistir de querer mais e melhor.

Mas se o vencedor fica conformado

depois da insatisfação que o levou à vitória,

também fica submisso à sua nova condição.

 

Os triunfadores, quando satisfeitos,

perdem os atributos que os impulsionaram

para a tenacidade que lhes deu o sucesso.

 

A satisfação

é apanágio dos conformados

que não têm a fibra do vencedor.

Mas os satisfeitos aparentam ser felizes.

E os insatisfeitos, serão felizes?

 

Será que a felicidade é uma herança

do sangue, da paisagem ou do clima

ou é uma conta feita noutra balança

que por instinto vem ao de cima?

 

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 3 de março de 2025

A esperança [604]

 


Sem esperança, há quem diga

que a vida é mais difícil porque é vazia.

Outros há que afirmam

que com ela há uma ilusão

e é um sintoma de impotência.

 

Eu sinto-a como um banal

e estranho panorama

que observo como a um quadro de teatro

de uma novela vulgar, sem meada,

em cena para distrair os sentidos,

ou uma dança sem música de uma brisa

que, com sorte,

apenas faz oscilar arbitrariamente

algumas folhas irrelevantes.

 

Mas, senti-la, é ter alento

para que aconteça o que queremos

quando nada podemos fazer.

 

 

© Jaime Portela, Março de 2025


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Escrever é deslembrar [603]

 


Para nos afastarmos da vida,

ouvimos, inativos,

música que nos embale.

Outras artes, teatro ou dança,

não nos separam da vida,

são observáveis

e vivem de idêntica humana realidade.

Na cisão que a literatura opera,

a vida é um fingimento,

um romance é uma narrativa

do que não existe

e um poema é a manifestação

de conceitos e emoções

num código em que ninguém se expressa.

Escrever é deslembrar,

é arte e engenho

de um divórcio intencional da realidade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Escrever é uma insubmissão [602]

 


Escrever

é esvaziar um lago sempre cheio,

apesar do rio que alimenta

levar até à foz

a água que jamais regressa ao lago.

 

Na escrita há uma embriaguez

feita de essências da mente,

de heroína apanhada nos recônditos

dos escombros da fantasia,

de flores multicolores

colhidas no túmulo das intenções.

 

E há plantas desbragadas

que amotinam os braços

nas bordas impercetíveis

da abundância de ventos do ser.

 

Escrever

é uma insubmissão e um vício,

é uma droga que se venera e consome

num abraço à liberdade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Perceções [601]

 


A grandeza da nossa existência

é a perceção que temos dela.

 

Para o camponês,

cujos limitados terrenos lhe são tudo,

as suas terras são um império.

 

Para o latifundiário,

cuja vastidão de terras ainda é insuficiente,

o latifúndio é pequeno.

 

Assim,

o pobre sente ter um império

e o rico precisa de mais.

 

Em rigor,

não temos, não vemos e nem somos

mais que as nossas perceções,

tudo é relativo.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Dúvidas [600]

 


Havendo leis que nos transcendem,

como a lei da gravidade

ou da certeza da extinção do sol

e da nossa vida,

valerá a pena tanto esforço,

seja na guerra ou na tecnologia,

se afinal os pobres são cada vez mais?

 

Se formos escravos

acorrentados à birra de um deus,

obedientes ao seu governo inalterável

de um fim incompreensível,

qual é a utilidade da vida?

Por que nos fez nascer para morrer?

 

Mas há conjeturas doutrinadas

que nos dão a ilusão

de podermos perceber o incompreensível,

que nos procuram convencer

da razão de tantas coisas erradas,

que nos dizem podermos dissolver

qualquer dilema ou mistério.

 

Mas, se não há Deus,

como é que tudo isto aconteceu?

E, se Ele existe,

porquê e para quê desta maneira?

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

O inferno existe [599]

 


Receio a morte, como todos receiam.

E temo o nada seguinte

que pode ser mais qualquer coisa

em que não creio.

 

Mas o medo é do nada

e do que possa vir acima do nada,

como se ficasse sem respirar

com a alma sufocada eternamente

e nesse tempo me castigassem

com uma prisão perpétua.

 

E o inferno, um mistério virtual,

talvez inventado por um espírito diabólico,

amplifica estes dois diferentes temores

que se contrariam e corrompem.

Ainda que o inferno exista realmente,

mas em vida.

 

 A CANÇÃO DO POEMA


© Jaime Portela, Janeiro de 2025