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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mares encapelados e mansos [252]



Há muita coisa que nos ficaria entranhada
se deixássemos de nos beijar.
A pele de galinha seria uma saudade
encarquilhada pela pátina do tempo,
saudade eternamente verde, não de esperança,
mas porque jamais morreria.
Apesar da improbabilidade,
semelhante à de podermos
assistir da Lua pela TV ao fim da vida na Terra,
há assaltos de incerteza
que logo se quedam com mais ternura despida.
Porque, para além da praia da nossa boca,
nunca haverá outros mares
tão encapelados e mansos como os nossos.


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Agora que partiste [0251]



Agora que partiste,
Zé Mário,
sinto ainda mais a amargura
nos telhados enrugados dos teus olhos,
não de medo perfilados
mas da inquietação solidária
de ver o teu povo a lutar.

Os tempos foram mudando,
mas a tua vontade resistiu e venceu,
porque a cantiga é uma arma
e porque carregaste contigo
a queixa das almas jovens censuradas.

Por isso,
não posso ficar à margem do teu canto
nem distante do usufruto
que o ensaboar-me na tua voz representa,
porque, contigo, a morte nunca existiu.


A minha homenagem a José Mário Branco (1942-19/11/2019)


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Mete andorinhas dentro do peito [250]



Se as fontes de onde a vida nasce
se turvam de prostração,
é natural que tombem as mãos
que tecem a esperança.

Para quê teimar num sono
que adormece o sonho
se não erguemos nada mais
que a bandeira da amargura já negra?

Mais vale viver de dúbios intuitos,
troçar da nossa desgraça
ou até vestir olhar de ladrão,
do que sobreviver morto de pureza.

Mete andorinhas dentro do peito
mesmo que migrem ou morram no inverno,
elas acordam-te e fazem-te voar
ao ínfimo sinal de primavera.


© Jaime Portela, Novembro de 2019


quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Da vida, nada sei [249]



Da vida, nada sei,
esforço-me por compreendê-la
ao ritmo do carro de bois
ou dos cavalos de corrida que a puxam,
enquanto ela caminha inabalável
sem se dar ao trabalho de ver
onde põe os pés.

Da vida, nada sei,
tento medir-lhe o pulso,
sentir o rumo que toma
e até ver a cor das suas vestes
sem que ela pestaneje sequer,
deixando-me confuso
a olhá-la
como um boi para um palácio.

Da vida,
nem ao menos sei para que serve,
foi coisa que me entrou,
cresceu e atou,
fazendo de mim fruto cativo,
produto de algo estranho
que nunca me fez saber
o que sou e para onde vou.


© Jaime Portela, Novembro de 2019