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segunda-feira, 31 de julho de 2023

O sábio dos sábios e a banca [519]

 


Naquele tempo,

os peixes viram-se livres de redes e barcos,

a terra não foi mais arada

e do alcatrão e do cimento

desabrocharam rosas virtuais.

 

Enquanto isso,

a Justiça dormia e os paraísos,

explorados pela banca da sábia seita cavaquista,

tinham aparência legal.

 

Era o mercado contra o povo

e a pança cheia

dos que nada produziam

transformados em abutres financeiros.

 

Já falida,

a banca ainda era caucionada

pelos que já tinham posto o seu dinheiro a salvo

com desmesuradas mais valias,

alegadamente a troco de um casarão.

 

Mais tarde,

o povo, que diziam ter gasto de mais,

salvou os bancos da bancarrota

com o seu próprio dinheiro.

 

E hoje,

ingratos e insaciáveis,

cobram-nos juros a mais

e pagam-nos juros a menos,

acrescidos de taxas e mais taxas,

enquanto o sábio dos sábios, no seu casarão,

escreve livros que não falam disso.

 

© Jaime Portela, Julho de 2023


segunda-feira, 24 de julho de 2023

Anjos que arrastavam móveis no céu [518]

 


Há ideias que vão caindo sobre as nossas cabeças

como bombas de napalm,

numa guerra sem armas, de doutrinas,

que nos matam como tordos de asas atadas.

 

São lançadas ao vento

por tudo e por nada e por ninguém.

Se não é ninguém, o tudo e o nada são invisíveis

mesmo com ventos de feição,

quem é, então?

 

                        E, paulatinamente,

as nossas ideias vão sendo queimadas.

Remexendo as cinzas,

mais difícil será acharmos a liberdade da razão

e serão raros novos rebentos nas ruínas

à medida que somos formatados.

 

Seremos nós um disfarce do tudo e do nada,

do vento ou de ninguém,

ou nadamos nós num mar de pastosas subtilezas?

 

Sei é que, quando eu era criança,

pensava que a trovoada era causada pelos anjos

que arrastavam móveis no céu.

 

© Jaime Portela, Julho de 2023


segunda-feira, 17 de julho de 2023

Será? [517]

 


Será que há qualquer segredo

a cada repetido alvorecer

no mavioso canto dos pássaros?

 

Será que o pesado oceano,

estanhado por vezes , outras cavado,

é o contraponto da leveza das gaivotas?

 

Será que as cortinas que teces

toldam a certeza das janelas,

por onde deviam entrar bálsamos

e outros mistérios da vida?

 

Será?

Eu bem me esforço, mas,

assim dissimulada,

não vejo lágrimas salgadas

nem o perfeito oposto

na doçura imareada dos teus olhos.

 

© Jaime Portela, Julho de 2023


segunda-feira, 10 de julho de 2023

Uma viúva inventada pelo amor [516]

 


Talvez seja uma faca bem afiada

que rasga o núcleo dos sonhos

quando o silêncio te grita na insónia.

 

Talvez sejam os dentes de alguma fera

que não deixam dormir o teu corpo

exausto da ilusão

onde o vírus da ausência é destilado.

 

Talvez seja a luta que travas

contra o espaço e o tempo fragmentados

quando pisas o vidro escorregadio

de promessas esquecidas.

 

Talvez, mas esquece.

Porque há música para rasgar o silêncio.

Porque há unhas que dominam as feras.

Porque há outras flores noutras promessas.

E porque essa dor

é uma viúva inventada pelo amor.

 

© Jaime Portela, Julho de 2023


segunda-feira, 3 de julho de 2023

Da revolta [515]

 


Da revolta,

nos vestígios que sobrenadam

na cortiça das intenções,

não vislumbro qualquer indignação.

 

A mentira,

disfarçada de sabedoria,

é um sémen infecundo

que mirra da mulher ausente

e da secura persistente.

 

Revolta, é rasgar

sem olhar ao medo

do que nos possa vencer,

é arma que mata a letargia

que nos tolhe de esganar

quem nos sufoca.

 

© Jaime Portela, Julho de 2023