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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Flor subentendida [481]

 


Há em ti uma flor subentendida

e, enquanto a razão apenas presume,

hesitante,

ela caminha segura na pele do instinto

à procura da seiva,

infiltra-se nos poros e enlouquece a melodia

que até aqui me soava mortiça nas fontes.

 

Cheiras a terra e à frescura da resina,

tens a forma de flecha

que me perfura o peito em desejo,

fazendo rebentar da minha carne

a miragem que deseja tornar numa certeza

a tua flor subentendida.

 

Mostra-me o corpo

com o peito a dançar nas minhas mãos,

para que beba da tua boca a chama e a terra,

para que inunde com a minha resina de verão

o orvalho da tua primavera .

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Somos russos [480]

 


Desde que vimos o teu covil imperial,

o nevoeiro e o frio são mais densos

nas dores que o mundo sofre.

Ainda assim,

um ano de bombas na Ucrânia,

ou até mesmo a tortura

e a morte de inocentes,

não serão mudos e quedos tijolos

no muro da pacificação.

Somos russos

e o nosso tempo não está isento

da ameaça e da mordaça,

nem do exílio na Sibéria,

mas não há fala tirana

que nos cegue e cale para sempre.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O nosso Carnaval [479]

 


Prometo que me vou acomodar

na embriaguez do enredo

ao ritmo da escola do teu samba

e dançar nas tuas mãos

até que as minhas parem de agitar

a bateria do teu corpo,

por cansaço.

 

No teu sangue, que eu sinto

com a sagacidade da onça,

existe a gargalhada

no calor do sorriso

do império baiano dos teus lábios

e na clave suingueira da favela

à roda do violão.      

 

Sem máscaras,

o nosso Carnaval subirá o morro

nos dedos do cavaquinho,

no esquenta que arrefece angústias

com o querer do puxador

e será, dentro de nós,

o vencedor do desfile.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Gaiola de Faraday [478]

 


A grandeza do meu ser

é feita pela integração de cada mínimo de ti

e pelo clarão capital daí resultante

e continuamente alimentado.

 

São pequenos recomeços

que me abrigam

e onde o verbo se anula na alegoria e na causa,

reproduzindo-se à velocidade da luz

em metamorfoses de afeto.

 

O que sinto por ti,

o amor que cresce nessa gaiola de Faraday,

é uma fragância de luz do caos isolada.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Saltitando [477]

 


Aqui,

deitado ao relento a olhar as estrelas,

se alguém me visse

pensaria que tento perceber a minha alma

vasculhando os confins do universo.

Ou que, de olhos focados nas Três-Marias

ao som cósmico dos cães,

que ladram ao longe,

estaria prestes a descobrir o propósito da vida.

Mas não, nestes abandonos prostrados

gosto de me alimentar do vazio,

sem pensar em nada,

enquanto me esqueço

das labaredas da escuridão,

das entranhas dos nervos,

das ossadas carcomidas,

das flores mortas,

de tudo o que há podre na diarreia da vida.

Sou feliz, portanto, pois tenho traves

a bloquear os neurónios em descanso

e o coração anda à solta,

talvez a bombear

algum romântico e lírico furor

enquanto a cabeça está distraída

e não pensa em nada.

Assaltou-me, no entanto,

a ideia de que nada principiou

antes do verde onde me deito e que,

vergada sob o jugo da espera, a vida

deve ter saltitado de planeta em planeta,

durante uma eternidade,

até se refastelar no sangue

que o meu coração manda para os neurónios.

E acabou o meu sossego. Saltitando

de ideia em ideia, já de traves partidas,

deixei de ouvir os cães,

de ver as estrelas, de me alimentar do vazio,

e cheguei à certeza

de que o verde não existia antes de te ver

e de que foi nesse preciso momento

que nasceu o nosso propósito da vida.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Ondulante e insinuante [476]

 


Ondulante e insinuante,

posso ver-te como um violino

implícito nas sombras

a encantar a minha noite.

Ou como folhas perenes

de uma planta que em nós cresce

a cada passagem do sol.

 

Em qualquer caso,

beijo os teus seios de mulher

nada e criada com uma tez

que não estranho

com o poder quente da boca,

pronta a esquecê-los

em troca de outros segredos de céu.

 

É com o instinto desperto na luz

que te doas,

transposta pelo meu brado marujo

nas ondas do teu corpo,

onde te vejo

semeada de folhas e sons de violino.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

O que vejo nos teus olhos [475]

 


O que vejo nos teus olhos

é a minha casa com janelas tuas,

praticamente iguais às que tenho

abertas para ti

nas minhas arcas ocultas.

 

De unhas perfeitas,

com aromas de amor e sorrisos

estampados no vestido justo

que do teu corpo revelam mistérios,

as visões são perturbantes,

porque reais.

 

Corpórea, apesar de deusa,

és mulher a quem vale a pena

derrubar muros e levantar círios

no ar que te beija,

porque os teus lábios

celebram um culto imaterial

de fogueira sempre acesa.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

A paixão [474]

 


Sem se saber muito bem como nem porquê,

a paixão nasce condenada a não viver

no turbilhão da mente.

A maioria das vezes a sua morte é prematura,

de horas ou dias,

feita apenas de vontade e sedução.

Se por milagre sobrevive,

ergue-se em silêncio, infiltrando-se no sangue.

E ouvimos e sentimos

o seu borbulhar permanente nas entranhas.

 

À sua volta o mundo desaparece,

sinal que avança e revoga,

ilusionista, o pulsar de todas as coisas.

Não repara, nem quer saber

da crueldade da vida ou dos heróis da TV.

Vive focada em si própria

inviscerando-se no corpo do pensamento.

 

Adensa-se e, com o viço,

já nenhuma força a desarma.

Sem retorno e irrepetível, instala-se

até à raiz dos cabelos,

circula ao ritmo dos ponteiros dos segundos

na energia do cérebro, subjugando-o,

e reformula o caos do planeta.

 

Então,

os sentidos não vacilam

e ignoram o cerne do mistério da invasão.

E a paixão, bom parasita,

vive da ocasião e do sangue do hospedeiro,

até morrer.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2023