Translater

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A menos que pense em ti [464]

 


A menos que pense em ti,

quase nunca me inflamam

o despontar da manhã

ou os primeiros segundos do novo ano.

 

Contudo,

nunca se esquece de ti

a minha alma sufocada,

embora quase nunca me lembre

dos lírios decorados com gotas de orvalho

ou da melodia do entardecer.

 

Mas quando,

no desespero da ausência,

a memória congela,

a visão aninha-se e retorna ao vazio,

as manhãs definham

e os segundos

ficam prenhes de horas escusas.

 

Para não falar dos lírios murchos

ou do silêncio ferido

por imagens vazias com sabor a nada.

 

Apenas sobrevivo

porque crio para ti

a cantiga da loucura em tons sensatos

e sinto, na distância,

a urgência da tua carne,

que brilha,

e a leveza certa da chegada,

que tarda.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Eras Natal [463]

 


Em mim,

celebrei-te como perpétuo.

Mortal, para os hereges.

Eras lógico

num presépio

para uma carência inexplicável,

mas não percebi o ilogismo.

Eras um nome

para a certeza do momento,

em que o Filho

nasceu profetizado

como pináculo do Homem.

Eras Natal.

Mas, desde então,

nada do que havia melhorou.

- Culpa do Homem.

Já sabia,

a culpa é sempre dos outros.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Sou um dos condenados [462]

 


Sou um dos condenados

que abundam nos patíbulos,

cordeiros por vós explorados,

vis carrascos

a quem deram corda para a ordenha

de sangue e frieza.

 

Sou um dos sufocados

que se esgotam na loucura

da imolação por vós preferida,

salteadores a quem delegaram,

impunes,

a arte de bem roubar

e matar em toda a casa,

até onde o braço da adaga

consiga chegar.

 

Sou um dos breves elogios fúnebres

que pululam nas vossas palavras,

um manto neoliberal

colorido de generosidade,

escudo falacioso

contra a vontade que tenho

de vos enfiar todas as vidas

amputadas pela goela abaixo.

 

Serei mais um arruinado,

mas também serei

um dos que vos derrubará

sem direito a lugar no panteão,

porque a vossa demência

representa a escumalha

na podridão obscena

do holocausto que perseguem.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

É nos folguedos de Baco [461]

 


É nos folguedos de Baco que absorvo,

dos teus mistérios,

a loucura que da vida me rouba os cuidados

nas mais inebriadas bondades.

 

És a Cibele enfermeira,

a fascinante Medeia e a Vénus divina,

em uníssono,

sempre que a dança da chuva se serve de nós,

fermentante.

 

Vivemos liquefeitos,

também nos olhos,

de corpo sólido agitado nos bagos

espremidos para encher de fogo a taça

com que brindamos à graça e à ternura

de nos termos doravante copiosos.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Não provarei do teu mel [460]

 


No binómio do teu oásis longínquo,

na ignorância das abelhas

e no perdido ensejo dos zângãos,

evitavas os néctares

e alimentavas-te das sombras,

da caridade das doçuras amargas

de répteis ocasionais, de que fugias,

e das carícias aprendidas

na puberdade condiscípula dos dedos.

Longe da colmeia, ignoravas as flores e,

dos machos,

desconhecias a volúpia do toque,

mas amavas-te no refúgio secreto

do teu corpo, no receio do pólen alheio.

Mas, mutante, num êxtase polinizador,

perdeste o medo aos estames

e renasceste embebida por geleia real

para seres a abelha-rainha do teu zângão

eleito em voos nupciais.

E eu, zângão sem sorte, que estava

pronto a morrer por ti na vertigem do amor,

não provarei do teu mel.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

O tempo recomeçou [459]

 


O tempo recomeçou

quando a lua pousou o sol nos teus lábios

e das sementes bebidas

brotaram mãos que se beijaram

com desprotegida ternura.

Em nós, passou a fermentar o vinho

e os céus não mais se tingiram

com alvoradas liquefeitas

de inquietação no olhar.

Foi a tua alma que limpou

as janelas sombrias da hora tresmalhada

e me libertou adolescente

no fulgor dos tempos de luz.

E o tempo, agora,

enquanto as nossas bocas prenderem

os relógios de sol, fica parado na lua.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Os sinais [458]

 


Os sinais podem ser mínimos,

mesmo ínfimos,

mas o clarão vindo dessa luzinha de ti

emite um relâmpago

desmedido na lupa do propósito.

 

Crescem claros no alvoroço da carne

[embora caminhem ainda sem voz,

apenas com sabor e cuidado]

como cogumelos,

de onde brotam pés de centopeia.

 

Vão multiplicar-se,

porque irão germinar

como sementes em estufa

até que se transformem em torrentes

de um querer inabalável.

 

E deixarão de ser sinais, por inúteis,

já que todos eles se eclipsam

ao som do tangível,

mortos pela certeza do querer.

 

© Jaime Portela, Dezembro de 2022


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Concentrado [457]

 


Concentrado,

com a agitação e o sossego de um ladrão,

mas também com a subtileza da raposa,

gosto de atravessar

a sensibilidade das portas da imaginação,

onde há peças, furtadas à realidade,

que se compõem como puzzles dançantes.

 

Sempre diferentes e sempre iguais

[tal como nós,

genomas distintos dos mesmos genes],

eles são o produto de uma arca criadora,

tão absurda quanto lógica,

onde há ventos sensuais,

velas de panos latinos,

corredores labirínticos

e até janelas para outros mundos.

 

Ligo as luzes de navegação

e os frescos dos cenários

têm asas nos papéis de cada peça,

pintam-se das cores mais ousadas,

trocam de posição,

encaixam-se,

misturam-se e,

em cada segundo,

há vários episódios que começam e acabam,

numa festa contínua de emoções.

 

Mas os puzzles amotinam-se

e perco o domínio de ladrão e de raposa.

Sou já eu uma das peças do caos da imaginação

[sem saída, com a porta agora fechada]

e tudo acaba e começa

quando o puzzle se faz de duas peças apenas:

eu e tu, enzimas recíprocas.

 

© Jaime Portela, Novembro de 2022