Translater

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Traídos [473]

 


Traídos

com má-fé e humilhados

de caso pensado,

estamos cansados

do caminho

sem sabermos o destino.

Será em cima da pobreza,

em qualquer caso,

a refundação deste mundo

a saque, sem rei nem roque.

Entorpecidas,

as bocas silenciam-se,

precipitando o conceito

da fome e da impotência

à espoliação.

Somos exilados

sem exílio

num desterro de esvaídos,

na penúria sem flores

em que estão a converter

este nosso jardim

de azul celeste plantado.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Brincamos [472]

 


Brincamos à morte do conformismo

e aplaudimos as grandes causas mundiais

no remanso do sofá.

Viciados na denúncia do vício da corrupção,

contemplamos a teia

sem ver a planetária pobreza dos fracos

por onde a penúria circula exangue no sangue

e sem esganar nenhum dos senhores da guerra.

E sabemos que precisamos de uma noite

de facas longas e afiadas

contra a trampa do liberalismo selvagem

que nos vão vendendo

travestido de economia de mercado

e contra a tirania

dos ditadores que persistem no poder.

Nessa noite,

que depressa dia seria,

dançaríamos ao toque de outra Grândola,

de outro Kalinka, de outro Samba,

e só estariam terminadas quando cuspíssemos

toda a revolta entalada na garganta.

Então,

despiríamos a noite em que nos ofuscamos

e trajaríamos o raiar da nova aurora.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Alguém nos convenceu [471]

 


Alguém nos convenceu,

entre outras coisas da vida,

que com o tempo as coisas só poderiam melhorar,

que deveríamos amar os outros como a nós mesmos,

que há amores proibidos,

que a comida deve ser saudável.

Afinal, estamos pior,

o bem alheio pode ser ilegítimo,

os amores permitidos vão murchando sem brilho

e morremos cada vez mais devagar,

sofrendo mais, quase sem doenças.

Resumindo,

somos pobres com amores legítimos em dieta

e padecemos plantados na espera da morte.

Gostava de saber

quem foi o figurão que nos convenceu…

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Mãos [470]

 


Tenho saudades

dos comboios a vapor

e da bisca lambida

na praça cheia de mirones e pombos

com as mãos atrás das costas.

 

E tenho saudades

dos carrinhos de folha

e de brincar ao réu-réu

com as meninas da praça

cheia de mãos

não quietas atrás das costas.

 

E também tenho saudades

de viajar por rios nunca antes navegados

na valeta da estrada

com barquinhos feitos à mão.

 

E até tenho saudades

de trocar o meu leite com cevada

pela gordurenta água d’unto

do meu vizinho

na rua das mãos sem gordura.

 

Mas não tenho saudades

da ditadura do Salazar

nem dos professores

das reguadas prepotentes

nas mãos humilhadas.

 

E também não tenho saudades

da sopa dos pobres

da abastada caridadezinha

nem das meias sardinhas

no mar de mãos sem comida.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Há uma angústia [469]

 


Há uma angústia

que se agita e cresce,

numa galopada

exterminadora de sonhos

adolescida nos olhos.

 

Ninguém gesticula

da outra margem da esperança

para que trajemos de verde

e se acendam

os pássaros de sol

dentro de nós.

 

Os rombos do navio

são o rosto dos malefícios

que queremos apear

e as injustiças

são os remos da premência.

 

O tempo de amarinhar

para escapar aos naufrágios

é sempre agora.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Sei de um pintor mentiroso [468]



Sei de um pintor mentiroso
Que diz saber o que faz
Mas é um ser ardiloso
Inoportuno e voraz

Está vendido ao carreiro
Com ar de santo acabado
Só quer o nosso roteiro
Para entregar ao parado

O costume é o vilão

De quem ficar no borralho

Agarrado à tradição

Diz que teremos atalho
Através da salvação

Da preguiça sem trabalho

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Tudo vem de ti [467]

 


É natural que adormeça inflamado,

porque são da tua boca

as palavras de fogo

que ouço ao adormecerem comigo.

E porque não existe nascente ou colheita

em que o teu corpo

não tenha sido rio e seara.

        

E também é natural que desperte renovado,

porque há estrelas que se agitam

nos trejeitos dos teus olhos de bom dia

ao acordarem comigo.

E porque não existe monte ou planície

em que a tua pele

não tenha sido jardim e universo.

 

Tudo vem de ti,

já que entras no meu estro

como a energia do sol na seiva das plantas

ou como a crença na alma.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Da bolha mediática [466]

 


Na verdade,

eu nem sequer chego a acordar totalmente,

já que fico aturdido

com as más previsões matinais,

que, ao fim da tarde,

são desacreditadas por outras ainda piores.

 

E eu,

que me movia consoante a hora do dia,

tendo como referência

o débito ronceiro

da rádio com sol ou da TV com lua,

ou até dos jornais a qualquer luz,

dou comigo a respirar

na espera de novas mal estreladas.

 

Do massacre apavorados,

com tanto pisar e repisar até à exaustão,

os meus olhos avermelham-se

da verdade envenenada e comentada

e da congestão de notícias empoladas.

E o médico da mentira,

já vai dizendo que não há sais de frutos

para tão grande maleita.

 

Porque é canceroso,

o que nos dão e teimam em continuar a dar,

talvez a quimioterapia

de quem informa resulte.

Mas, o melhor mesmo,

diz o médico certeiro, é juntar a isso uma cirurgia,

onde, da bolha mediática,

não fiquem vestígios do cancro nada ronceiro.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Zeus e Leda [465]

 


Rendido ao encanto

da sedutora rainha que discreta em ti se rege,

heleno crente e amante,

sou um cisne

a glorificar-te em opíparos festins.

Na fértil nata de tão mélica visão,

serei o gozo afogado de Zeus

a espalhar bálsamos

pelos montes e vales que possuis

nos lautos balancés da tua Leda flora.

Sei que procuras serenar

as vivas provas dos cantos

que me chegam chamativos,

mas cantarás seduzida, pois sabes,

nada espartana,

que é de mim que nutrirás as tuas fantasias.

Será no vigor do arroubo

que eu roubo a flor que para mim tens zelado.

E será na lassidão da bonança

que te verei no jardim, ainda mais adornado.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2023