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quinta-feira, 30 de março de 2023

Quando chegaste [490]

 


Quando chegaste,

vi uma ave rara em vias de extinção

que pousou nas minhas mãos.

 

Quando chegaste,

correu em mim o teu perfume,

misto de cânfora e ansiedade,

suave tremura paralisada no teu rosto.

 

Quando chegaste, de porte gracioso

e plumagem deslumbrante,

foi a tua alma que se acendeu

e vi o milagre:

extinguiram-se as vias de extinção.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


segunda-feira, 27 de março de 2023

Palavras sem degraus [489]

 


Depois de ter pisado

quase todos os degraus,

ainda suspiro pelos teus olhos,

espelhos convexos de sedução

que me perfumam a noite.

Ao vê-los,

sucede em mim a paz e o desejo,

a guerra e o enlevo,

encontro Vénus e a tua boca

gira à volta da minha frágil razão,

engolindo-me vivo.

Rogo para que os céus

me enviem do espaço uma luz

tão cândida como a do teu rosto,

uma luz criada pelas tuas palavras,

palavras sem degraus

que sejam gémeas dos teus olhos.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


quinta-feira, 23 de março de 2023

Há lobos e bobos [488]

 


Há lobos e bobos

na corte do Kremlin.

Conspurcam o decoro

e proliferam como ratos.

E no povo, desinformado,

já não há pobreza

nem paciência

que os suporte.

Mas têm a força

que esmaga e que cala

da Praça Vermelha às cadeias.

E o povo nem pode rir-se

de cada uivo que dão.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


segunda-feira, 20 de março de 2023

Morrerei com um novo coração [487]

 



Sem transplantes, os sons ganham alma

e o meu pulsar beija, todas as manhãs,

a flor de sol que corre no teu corpo

com uma brisa de mar e de trópicos.

Minha ternura de linho tecida,

cuja fronte me enfeitiça

na verdura nortenha do olhar,

é na ventura imutável que te abraço,

é dentro do teu sonho que eu respiro

e que vou reflorir envelhecendo contigo.

 Percebo, porque o sinto,

que morrerei com um novo coração.


© Jaime Portela, Março de 2023


quinta-feira, 16 de março de 2023

O gesto [486]

 


O gesto que carrega a saudade

infiltrada na presença que nos falta,

é o mesmo gesto

que penteia os teus cabelos

ou te afaga de ternura

na lucidez que lavra incendiada

na brancura dos teus seios.

É o mesmo gesto

que derruba as palavras pela raiz

no mel derramado no teu corpo

e que te cega da graça

cavada na garganta,

que se engasga

como artéria na hora de ponta

e enrouquece

como os gatos em Fevereiro.

É um gesto

que tece e entretece

o sangue que nos une

tão imenso e profundo como o mar,

que te inscreve e te inclui,

que se infiltrou e permanece

na pele da nossa inquietação.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


segunda-feira, 13 de março de 2023

Sabes que vou mergulhar [485]

 


Sabes que vou mergulhar

no vinho de uma taça que me ofereces,

vestido pelo álcool

que se entrega nos teus lábios

com a força abandonada às tuas mãos.

 

Iremos maldizer

todo o tempo que perdemos

a esbarrar nos muros da abstémia

porque não é dispensável caminhar

emudecendo a alma de alegria.

 

Seremos o delírio

impregnado na pele dos sentidos,

de alegorias

e de outras inutilidades despidos,

inteiramente confiados

ao que a razão não percebe.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


quinta-feira, 9 de março de 2023

Da carência da ternura [484]

 


Sei que os jardins inventam as suas flores,

pois são diferentes de todas as outras.

E nós inventamos outras flores,

que nos desculpam e acusam,

onde vamos deitando

adubos de vida e de morte

para serem sugadas pelas raízes da imagem

que os outros implantam

nas suas retinas que pensam perfeitas.

 

Indagando o rodopio louco da vida,

vejo que há muitas flores não inventadas,

várias rosas sem pétalas,

diversos lírios caídos sem caule

e até múltiplas raízes sem chão.

Há vazios inventados,

em tudo iguais aos dos outros,

onde as ideias

se definham eternamente menstruadas.

 

Mas ainda há tempo para recusar o vazio,

porque há sempre tempo

de inventar um jardim de flores perenes,

mesmo que sejam de musgo,

e encher retinas

para além da própria vida.

Ainda há tempo de semear flores audíveis

e de aplacar a crueldade

da carência da ternura.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


segunda-feira, 6 de março de 2023

Vinho probatório [483]

 


Não há como fugir das minhas mãos

que te aprendem no perfume

do desejo que faísca a cada toque.

 

Sussurro a minha boca no teu ventre,

por onde voam bandos

de andorinhas a caminho do teu ninho.

 

Seduzido, sigo-as por vales e montanhas,

e vejo-te, como espelhada na água,

em simétrico movimento migratório.

 

À chegada renascemos pela boca,

eu em ti e tu em mim,

em espasmos de vinho probatório.

 

© Jaime Portela, Março de 2023


quinta-feira, 2 de março de 2023

Suicídio [482]

 


O rio entrou pela janela

e transformou em areia

a pedra que eu tinha

debaixo dos pés.

 

A água subiu por mim

como uma bênção,

as flores abriram

e passei a ouvir pianos.

 

O mar, veio depois,

meditabundo

nas primeiras vagas,

arrebatado

nas seguintes.

 

Então, surgiu o sol

e o massacre das sombras

foi total:

suicidaram-se a cada palavra tua.

 

© Jaime Portela, Março de 2023