Translater

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Não sabemos de onde vimos [148]




Há montanhas de genes invisíveis
que se movem dentro de nós
até nos soterrarem sem vida.

Há dias em que não percebemos
o que de noite vemos
de olhos abertos no escuro.

Há uma guerra sem tréguas
na vida que em paz nos há de açoitar
no instante da morte.

Somos borboletas erráticas
por entre fogos punitivos
que por vezes são vazios de sentido.

Frágeis como teias,
suportamos fardos escondidos
nas ideias feitas de pecado.

Frutos maduros de dogmas,
não sabemos de onde vimos
nem para onde vamos.

Entregamo-nos à existência
sem sabermos para quê,
mas na guerra desta dúvida
há mais luz do que na paz do consenso.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Se recearmos a queda deixaremos de subir [147]




O pensamento não para,
mas quando o dia acaba
o sossego cola-se aos teus olhos
e a boca, desperta,
sempre à escuta dos passos do sonho,
sorri ao fogo e ao sal
que a nossa carne vadia temperam.

Por vezes, eu faço parte do sonho,
quando te amparo na súbita queda
a um poço deserto, sem fundo,
ou quando te ocupo inteira
num desmedido torpor
de janelas escancaradas à loucura.

Sempre que os sinos tocam a repique,
ofereço-te um oásis vermelho
numa rosa de espinhos proibidos
e partilho dos teus desamores
na carne viva gravados,
afastando a derrocada, iminente,
dos teus pilares abalados.

Porque se recearmos a queda
deixaremos de subir,
já que os pensamentos sem sonhos
são escadas sempre a descer.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Quando a noite chegar [146]




Quando a noite chegar,
do ser ficará o corpo inconsciente
[será o vento a largá-lo à sua sorte],
deixaremos de contemplar o verde
e seremos incapazes de tocar o céu,
porque a paisagem
fugirá lentamente das retinas.

Quando a noite chegar,
a carne beijará o chão até ser terra
e os ossos, mais teimosos,
depois de se diluírem na chuva
em contínua viagem para o rio,
acabarão por ser despejados no leito
confundidos no musgo e na lama,
alimentando peixes.


Por isso,
enquanto não viajamos amorfos,
quero beijar a tua boca agora ardente
e provar todas as delícias
que há no mar do teu corpo ainda vivo,
de lábios por dois desejos unidos
num só abraço, num só poema cônscio.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Nós e as moscas [145]




Dançando no olhar,
a força da palavra divide as coisas aos pares,
e o nervo, narcotizado e incapaz
de perceber as diferenças num tempo lúcido,
distrai-se a cada chamariz cintilante
em que tropeça.

Numa batalha desordenada
de bolsos furados,
tentamos ver orifícios em portas esconsas,
para enfiar chaves perdidas
em caminhos errados
que não queremos saber se percorremos.

Lembramo-nos piamente das vítimas
exibidas nas montras que nos querem mostrar
e nem percebemos
que pertencemos ao rebanho de cordeiros
que se alimentam em prados de fast-food.

Em fila indiana, somos aliciados
como gado manso que apenas abana a cauda
para enxotar as moscas, elas sim,
geneticamente habituadas a mudar de lugar.

 


Jaime Portela

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Germinal [144]




Perdida,
mergulhada na loucura
de uma busca no vazio
que te roía as entranhas,
reconheci-te
no grito de raízes soterradas no lodo
em gestos níveos de cal,
hálitos que nasciam da tua boca
em plangentes cantigas de exílio.

Perdi-me
ao procurar a última réstia de fogo
no teu labirinto de gelo,
que percorri sem método
por entre os cotovelos resignados
das tuas feridas,
mas descobri uma estátua rosácea
que se ilumina festiva a cada carícia.

Daí que o calor de um abraço
faça milagres e que,
com o arbítrio das mãos,
te alimentes com as sementes
que no teu ego germinam.

 


Jaime Portela