Translater

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Palavras [405]

 


Olho a urgência de falar
e vejo, dentro de nós, palavras de voz suprema
e de cacarejos inúteis,
palavras de vários remos que nos podem libertar
ou desfazer, como a proa no cais a morrer.

Na praia onde nos debatemos, há palavras
de sítios pejados de tartarugas de pernas para o ar
e palavras de peixe graúdo

com rios por descamar que escurecem a foz.
Mas há palavras de um ror de povo que há de vir
que espalharão a luta por um porto inabalável,
com a recusa do naufrágio da razão.

No cais onde nos vemos
há a presença e a ausência de palavras,
há a infinidade das que acreditam em nós
e há palavras quebradiças
que já não contam com nada e para nada.

No navio onde nos havemos
há velas de palavras enfunadas
e há baixios de palavras onde a quilha se enloda

na deslavada hipocrisia,
há pessoas de palavra
e há mentiras embrulhadas em palavras de veludo.

À nossa volta,
há um mar de palavras nunca ditas
que os cordelinhos de mão torta decretam abolidas.
Quase amarrados,
vejo dentro de nós a urgência da palavra depurada
e a pulsão impreterível de encontrar
a liberdade no falar verdadeiro e redentor.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


quinta-feira, 26 de maio de 2022

Odisseia [404]

 


Para que o teu corpo de princesa não estranhe
o toque moreno da pele marialva
e para que os teus seios se tenham torneado
com os reflexos vândalos da neve,
violenta mistura de sangue sucedeu.
Ou talvez tenham sido as espadas e os arados,
acasalados no corpo profanado das tuas avós,
que te entranharam os genes da saudade.

Para que as tuas mãos compreendam virgens
a suavidade das nuvens num dia de sol
e para que os teus braços saibam de cor
os contornos do meu corpo de mar,
mil varões e muitos mais escravos

se pouparam de naufrágios.
Ou talvez tenha sido a água bem-aventurada
que herdaste do olhar das tuas antepassadas,
mulheres que navegaram na claridade
dos remendos do pano-cru das caravelas perdidas.

Para que sejas tão perfeita e de mim tão sabedora,
há em ti uma sereia que afasta Adamastores e
uma ninfa da Ilha dos Amores do Canto de Camões.
E eu confirmo, porque avisto, num repente,
no teu beijo com o sabor de séculos,
toda a tragédia dispersa no fado de tanta odisseia.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


segunda-feira, 23 de maio de 2022

Labirinto [403]

 


Não me liberto de ti
porque sou prisioneiro do ser no meu estar
e do pensar no teu ser.
Porque, não sendo iguais,
existimos gémeos no rumo em que estamos
e na perdição sem limites
do estar em labirintos impensados.
Sendo o existir involuntário
e a nossa natureza um mero [mas feliz] acaso,
é casual o rumo que tomámos.
Porque somos influenciados
pelo reflexo inato da natureza do ser e do estar
de outros existires
que nos enredam noutros rumos.
Assim sendo, estou perdido…
Não me sei esclarecer na encruzilhada de rumos
e corremos o risco de nos esbanjarmos
apenas e sempre neste nosso labirinto.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Tempo de rosas [402]

 


Amanhã,
quando o poema invadir os teus braços
e percorrer inteiro as veias do teu corpo,
será nas mãos que revelarás
a perceção do desejo

que há na luz do teu olhar.
Acordarás, então,
a perfeição dos teus seios
e a ternura inundará a tua pele,
moldando-te a voz
em timbres que julgavas esquecidos
nas palavras da memória submersa.
Haverá,
nesse tempo de rosas, bandos
de andorinhas perfumadas no teu rosto,
mas não será minha essa virtude,
já que me darei em silêncio
para não paralisar a beleza do teu voo.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


segunda-feira, 16 de maio de 2022

Exijo que me indiquem o caminho [401]

 

Exijo que me indiquem o caminho
para sair do buraco da guerra
[mais fundo e ainda mais vasto
que o Curral das Freiras]
onde estamos atolados.
É preciso recusar esta aldeia global
onde não há paz

e onde há cultos apregoados

omitindo o tributo da riqueza.
Exijo ainda que me tragam brisas
dos paraísos fiscais,
para onde foge muito do nosso suor,
onde hastearei uma bandeira
no mastro da nossa vitória.

Mas precisamos, já e não depois,
que a verdura cresça de novo
na janela do nosso otimismo
antes que a chuva lave as ideias,
para que os mísseis não se arrastem
no passo frio da mansidão das sanções.
Também exijo que nos devolvam

todas as pombas brancas que fugiram

por falta de ramos de oliveira.
Precisamos, afinal,
de enterrar o pesadelo das bombas
para ordenar a fertilidade
como a única lei do recomeço
e acordar na leveza compacta
das coisas triviais.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


quinta-feira, 12 de maio de 2022

Estamos zangados com a lua [400]

 


Estamos zangados com a lua,
com o céu
e com o que se passa na rua.

Andamos com esta desavença
na mala onde guardamos
as inutilidades que conquistamos,
mas a nossa alma é a mesma:
é uma liga de inferno e paraíso
caldeada pela luz
e pelas trevas do que somos.

E somos apenas a convulsão
de uma coisa que não dominamos.

Mas vivemos,
porque somos génios da ambiguidade
entre o grande e o elementar,
engrenados na imperfeição
das rodas dentadas humanas.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Calamos o sentir [399]

 


Calamos o sentir
que brotou do nada
e escondemos
o que nos transcende.

E não sei
se a querença oculta
é igual à descoberta,
porque a raiz não perdura
sem a clorofila das folhas.

Será que
as coisas que escondemos
acabam por morrer?

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


quinta-feira, 5 de maio de 2022

Apesar dos amanhãs paralelos [398]

 


Apesar dos amanhãs paralelos
inscritos na carne,
onde a luz que nos desliga
das sombras é recíproca,
temos facas cravadas nas têmporas
e dormimos acordados
à espera de um milagre,
quais abelhas ferradas no aroma das flores.

Possuídos apenas desta vida,
que nem sempre entende
a virtude da entrega solidária,
somos o laço de sangue que nos debela,
ao ponto de não nos sabermos desenhar
em rios, mares e florestas
nem desatar os pulsos
da cruz que nos aparta da essência.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022


segunda-feira, 2 de maio de 2022

Há em ti [397]

 


Há em ti
prazeres que fecundam os sentidos,
onde as cores
dos mares que te habitam
reproduzem braços quentes
que me concebem.

Há em ti
prazeres que se abrem no regaço
e se afundam no teu sorriso
de ave colorida,
pintando as sementes
espalhadas pelos vales do teu corpo.

Há em ti
prazeres que se despem
na loucura que os meus olhos restituem,
vestindo-te do vinho
que bebemos
na loucura da taça da luxúria.

 

© Jaime Portela, Maio de 2022