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segunda-feira, 28 de agosto de 2023

As palavras [523]

 


A vida é irreal,

vive de uma dieta monocromática de palavras,

que nos domesticam

como peixes num aquário.

Para não morrermos de inquietação,

enquanto o pêndulo impercetível oscila inabalável,

jogamos cobardemente a bisca

no caixote do lixo,

onde se amontoam as palavras já podres.

Para fintar a solidão,

forjamos o dever,

a consciência,

a honra,

o céu e o inferno,

que de tanto uso  se vão deslavando do sentido.

Também inventámos Deuses

para nos socorrer.

E os santos,

corroídos pelo salitre nos seus retiros.

Desde que se cumpram certos preceitos e verborreias,

conseguimos ser ladrões e honestos.

Mas vivemos de palavras

para termos alguma coisa a que nos agarrar.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2023


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

A vida [522]

 


Há quem faça da vida um costume

e olhe um céu miserável.

Quem deseje uma vida sem sustos,

onde more um chapéu que o cubra,

uma saia que o sirva

e um proveito emplumado.

 

Mas há os que moem e remoem,

os que azedam a paz

até chegar a hora da terra.

E há os que gastam os dentes

na ambição que trazem por casa,

a quem só restam palavras cruéis

e que sonham como doidos

sob uma coroa de lata.

 

A vida tem bons e maus costumes

que não morrem, ainda que mestiçados.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2023


segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Breve canto ao desafio [521]

 Notas:

Cantares ao desafio ou desgarradas: cantigas populares muito antigas do norte do país em que dois cantadores vão improvisando, desafiando e respondendo um ao outro, tradicionalmente com brejeirices, acompanhados por uma ou mais concertinas;

Santa Luzia: monte e templo a norte de Viana do Castelo, de onde se avista a cidade, o rio Lima e o mar;

Cabedelo: praia a sul de Viana do Castelo, na margem esquerda do rio Lima;

Senhora d’Agonia: capela que é o centro religioso da Romaria de Nossa Senhora da Agonia (padroeira dos pescadores locais) que se realiza desde 1783 no mês de agosto, englobando o dia 20, feriado municipal. Esta romaria é talvez a maior festa portuguesa de raiz religiosa.



Ele:

Boa noite meus senhores

Boa noite a toda a gente

Esta bela dos folclores

Vai aquecer num repente

 

Ela:

Se eu aqueço num repente

Tu resfrias bem depressa

Eu sou aquela serpente

A quem fizeste a promessa

 

Ele:

Já fui cumprir a promessa

De te dar um grande abraço

Vi-te de Santa Luzia

Andavas tu ao sargaço

 

Ela:

Andavas eu ao sargaço

Na Praia Norte cansada

Mas no farol de Carreço

Cantámos à desgarrada

 

Ele:

Cantámos à desgarrada

Nas margens do rio Lima

Tu lavradeira acirrada

Eu de jaqueta por cima

 

Ela:

Tu de jaqueta por cima

Nas dunas do Cabedelo

Mas não pintou um clima

Eras mesmo um pesadelo

 

Ele:

Eu nunca fui pesadelo

P’ra quem sabe aguentar

A culpa não é do martelo

Que é feito p’ra martelar

 

Ela:

É feito p’ra martelar

E levar um safanão

Eu só queria navegar

No mar do teu coração

 

Ele:

No mar do teu coração

Dancei o vira picado

Na Senhora d’Agonia

Já era teu namorado

 

Ela:

Já eras meu namorado

A tocarmos concertina

No malhão tão bem dançado

Até às seis da matina

 

Ele:

Até às seis da matina

Sempre sempre a pedalar

Tu eras a gelatina

Que eu sempre quis petiscar

 

Ela:

Se tu me queres petiscar

Vai-te embora e não me toques

E vai de mãos a abanar

Pôr de molho esses berloques

 

© Jaime Portela, Agosto de 2023


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Autorretrato [520]

 


Quase toda a gente sabe

Que a minha escrita é guarida

O motor é a paixão

Da palavra repartida

 

Todos sabem que os meus versos

São sempre de ficção

Não sou santo nem profano

Uns que sim outros que não

 

Mas no resto sou eu mesmo

Circunspecto ou mundano

Na mentira ou na verdade

Ajuizado ou insano

 

Quase ateu de pequenino

Tenho fé na amizade

Acredito em toda a gente

Com alguma ingenuidade

 

Sou calmo por natureza

Natural e coerente

Na tristeza e na alegria

Sou de extremos raramente

 

Posso ser adolescente

Mais velho que a maioria

Esta e aquela figura

Realidade e alegoria

 

Brincalhão o quanto baste

Comedido na amargura

Regelado quando além

Se estou perto sai ternura

 

Amigo do meu amigo

Dos não amigos também

Os inimigos desprezo

Malquerença a ninguém

 

Este é o meu autorretrato

Imperfeito mas que eu prezo

Dou-me inteiro a quase todos

Que por vós eu nunca rezo

 

© Jaime Portela, Agosto de 2023