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segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Sei que és [431]

 


Sei que és

tão delicada como a porcelana

e que, quando cais,

te partes em mil pedaços,

que recolhes e escondes de alma dorida

num canto de ti.

 

Fico a pensar que és um destroço

no mar agitado da vida,

mas que

lutarás por te levares viva

para a costa palpável da tua autópsia.

 

E vejo-te a colar os pedaços,

não sendo prazer nem mágoa

as feridas sobre as quais te reavivas,

pois a luz

que em ti se finda

tem sempre algum calor remanescente.

 

Ah, como estamos longe…

tão longe…

mas tão perto que a nossa fantasia

ainda ilesa

nos retira aquele aperto de sonharmos

o sonho de um segredo que não pesa.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Os meus dedos nos teus lábios [430]

 


Se passo os meus dedos nos teus lábios,

num arroubo de tempo sem espaço

        [palpável, de batom],

é roubada a perceção de te pensares serena

e eu vejo em ti uma gazela aguerrida.

 

Se vejo o teu silêncio,

fico envolto de cegueira e definha

        [no teu olhar]

o pensamento que vejo

de te cuidares minha,

ceifando o desígnio da ponte suspensa

em pilares de nós feitos.

 

Se vestes de afastamento

os horizontes de todas as variáveis do teu corpo,

sinto as margens da alma tão longe, e há

        [no dever do andar em frente]

um grito surdo

como queda vertiginosa num poço sem fundo.

 

Por isso,

mesmo que subas e desças o rio

num barco onde eu não caiba,

andarei perto

        [pela estrada que o segue]

e o ver-te feliz

será uma brisa tua

inserta de ventura no meu peito,

como quando passo

os meus dedos nos teus lábios.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Quando te esqueço [429]

 


Quando te esqueço,

sou tão robusto

como um castelo impenetrável.

Mas, quando me lembro de ti,

sou gelatina,

as minhas muralhas tremem

como varas ainda verdes

ao sopro da tua alma.

Quando te vejo, é bem pior,

a tremedeira cessa,

mas eu inteiro fico nu e indefeso

pela robustez que se entristece

ao teu primeiro olhar

e que morre, feliz,

em cada curva do teu corpo.

Mas eu prefiro

não me esquecer de ti,

para que tudo o que é teu

aponte para mim

com a afinidade

de uma bomba de neutrões

e me transmutes inteiro

até à fusão em ti.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Lentamente [428]

 


Lentamente, tudo ganhou forma

e se cobriu das mais variadas cores.

Terei sido eu o escultor ou o pintor

da obra de arte que representas?

O fio de água desce a montanha

por caminhos abruptos e,

a menos que seja impedido,

não tem outro destino

senão alargar-se até à foz.

No auge do seu caudal, deixa de ser rio

e passa a fazer parte do mar.

Apesar de já existires antes de te ver,

fui eu quem mais tarde te inventou.

Mas sei que deixei de existir, tal como fui,

desde que passei a fazer parte de ti.

Serás o rio que sozinho encheu o mar?

Ou o efeito que engoliu a sua causa?

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Tenho acordado [427]

 


Tenho acordado

com os aromas das flores de Abril enevoados,

a agonizar por entre as moitas do desânimo

e o gosto acre da chuva

derramada pelo temporal da tua ausência.

Abro a janela e vejo o horizonte

a ser puxado para baixo

a cada minuto que passa sem te ouvir

e o grasnado das gaivotas diz-me

que ninguém sabe de ti.

Roubo as asas de uma gaivota e vejo-me,

ofegante,

um trovador à procura do castelo da princesa,

alarmado e volátil como o espírito,

sem palavras de tormenta ou de bonança.

Do alto, vejo-te a sorrir num areal imenso,

beijando o mar a rugir de sofrimento

e afastando o arrepio dos ventos,

indiferente ao meu ciúme tresloucado.

Exausto, tento abrigar-me da borrasca,

mas esmago,

apago,

restauro e

dilato

este sofrer de amar-te porque sim,

este enlevo de algemas

que de mim se faz teu prisioneiro

num jardim pejado de asas diárias de gaivota.

Moribundo,

a respirar páscoas de flores ausentes,

mergulho em calafrios de pétalas insípidas

e adormeço à espera do encanto do teu cheiro.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Miragem de trigo e girassóis [426]

 


Somos um mar humilhado e nauseado

de tão desastrado navegar.

Obscenos,

os ventos juntaram-se pela falha das virtudes

dos homens bons e generosos,

com arte e engenho

para a epopeia fecundante, impreterível,

ventos esses fortalecidos pela burla

bem urdida nos porões da autocracia.

Mas a nossa voz continua opaca,

sem clamores de rebeldia.

E, sem timoneiro,

somos remos vãos de movimento.

As vozes são poucas, são cata-ventos

com as mãos atadas à voz do comodismo.

Enfraqueceu a vibração do grito,

firme à mentira

e resistente ao despotismo,

neste terreno onde abundam malfeitores,

piratas infames da nossa indignação.

Gritemos indignados

porque o tempo é de desgraça,

prendam-se os ricos oligarcas

banqueiros

e padrinhos que arruínam a paz.

O mar fecha-se,

inquinado,

envenenado e poluído

pelo asqueroso poder que vomita

mísseis cegos a cavar valas comuns,

onde remamos

com a miragem de trigo e girassóis.

Conquistem-se

outras velas ,

outro vento,

outro rumo,

porque se a injustiça nos queima

também engorda a revolta

nos ventres que ião parir, por certo,

a água e os remos

para o barco do nosso movimento.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Este é o tempo [425]

 


Este é o tempo
onde o amor em que te mostras
é ternamente insuportável.
É lua-de-mel
[o fascínio mata as feridas]
e primavera
[o fogo encontra o trevo

e digere-o como erva-do-amor].
Este é o tempo
onde se comprimem a inocência e a paixão.
O que na alma se revela
fica embutido
[sem remédio]
no tronco do sangue,
caldeado em sucessivas transfusões.
Este é o tempo
onde o coração da existência se soma
ao corpo da oferenda
[encantamento nos
braços largos de tão escasso tempo].

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022


quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Pirilampo mágico [424]

 


Da ténue claridade do pirilampo,

aprendi a decifrar
a luz que emana do teu corpo.
O interruptor da tua luz
está nos meus olhos.
Ligo-a se os fecho,
se preciso
de a ver num pedestal da tua alma.
É assim que sinto o teu desejo,
tão real e mágico,
que ouço a voz do pirilampo
pronto a acasalar, pronto

a apagar-se na tua luz de mulher.

 

© Jaime Portela, Agosto de 2022