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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Sem verbos falados [355]

 

Vendo, à lupa, o implodir do sonho,

que valores existem

para quem vê o ânimo esmagar-se

como se estivesse

dentro de um edifício a ser demolido?

Quando penso em ti,

abandonado, que teorias existem

para quem não vê quebrada

a regra que impede o festim

de me alimentar da tua nudez?

Porque não te tenho,

tenho a alma triturada

como grão de milho passado na mó,

tenho a razão ruminada

como um penso de palha

no bucho do gado,

tenho a verve sem verbos falados

à espera das tuas respostas.


 

© Jaime Portela, Outubro de 2021




quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A ti, Estevinho [354]

 

A ti, Estevinho,

a quem o sol dá a liberdade

de desfazer rugas

na cara das pessoas

transformadas em autómatos.

A ti,

a quem a rotina insípida

que escorre sonolenta

no espaço dos dias é alheia

e a quem a verdade,

que percorre a geometria do cérebro,

fecunda os óvulos das ideias

que habitam o ventre da tua imaginação.

A ti, Estevinho,

eu dou a liberdade

de me chamares irmão.

 

© Jaime Portela, ? de 1972

PS: Poema escrito, ao que dizem, porque não me lembro, no calor dos copos e em homenagem ao Estevinho, o colega de curso mais bem-humorado, amigo e turbulento. Mostrou-o, após 49 anos, aquando do seu 70.º aniversário (há dias).


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Sejam bem-vindos [353]

 

Sejam bem-vindos,

os nossos serviços funcionam 24 horas por dia,

7 dias por semana e 12 meses por ano.

 

Não se sintam sozinhos.

Façam amigos em todo o mundo

e esqueçam os vizinhos que só dão problemas.

Digam-nos onde moram, onde estão, onde vão,

com quem vão e quando voltam.

Na vossa ausência,

é provável que ninguém assalte as vossas casas.

 

Publiquem imagens, melhoradas ou não,

vossas e das vossas famílias.

Terão milhares ou até milhões de likes

e ninguém vai assediar as vossas filhas,

as vossas esposas ou os vossos maridos,

a menos que se ponham a jeito.

 

Mencionem tudo sobre o vosso dia-a-dia,

para que os vossos amigos

e os amigos dos vossos amigos saibam.

Aceitem os cookies e digam-nos o que compram,

que marcas de roupa usam

e outros gostos e dados pessoais,

em que gastam o vosso dinheiro

e em que partido vão votar nas próximas eleições.

Assim, receberão apenas a publicidade que precisam.

 

Nós garantimos a vossa privacidade,

já que vocês podem selecionar os seguidores

que podem ver os vossos dados e publicações.

E, para além de nós, só os seguidores dos seguidores

poderão receber partilhas desses dados e publicações.

 

Não eliminaremos falsos perfis e notícias falsas,

a menos que isso provoque muita indignação,

porque quase toda a gente mente e,

se fossemos rigorosos,

ficariam apenas meia dúzia de clientes (mas bons).

 

Sejam bem-vindos.

Aqui, gratuitamente, podem saber tudo sobre todos.

E os nossos clientes, que nos pagam, também.

 

 

© Jaime Portela, Outubro de 2021


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A bola da paixão [352]

 


A pensar no drible pensado

que fazia quando dançava com a bola,

lembrei-me dos lances floreados

que às vezes conseguia, impensáveis.

Com o drible pensado, sem alma,

perdia a bola para o adversário,

porque ele tinha pensado no desarme

do drible por mim pensado.

Ao contrário do drible desalmado

de floreados impensáveis,

porque ele não tinha pensado no inimaginável.

As nossas jogadas foram impensáveis,

mas não foram desalmadas,

porque nos driblámos a nós próprios com a alma

e ficámos na posse da bola da paixão.



Jaime Portela, Outubro de 2021