Translater

quinta-feira, 28 de maio de 2020

A ignorância das flores [280]



Quando vejo uma roseira esquecida
a fervilhar na margem de um caminho,
sou picado pela abelha da surpresa
e vejo nas flores uma exceção aos jardins.

Afastada a estranheza,
sou como um raio de sol, que vê, sem o perceber,
a regra de uma qualquer lei
que faz crescer na roseira flores de tanta beleza.

Comburentes da vida e da morte,
os dias passam de igual modo no jardim e fora dele
por tributo à mesma regra,
mas as flores desconhecem que são perseguidas
pelo ferrão da sua fátua existência.

O amor tem a regra e a exceção polinizadas,
tem a beleza e a ignorância das flores.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

O povo nunca ordenou [279]



Felizmente, não partimos muitas pernas.
Mas foi mais um fragmento de Abril
que morreu, gradualmente estrangulado
pela soberania das nossas costas a ele voltadas.

Do fracasso, deveria nascer o desejo
de pendurar um Maio de giestas em cada porta,
para que o bicho cão da indiferença
não lavasse o prato da fraternidade com a língua
nem ladrasse de egoísmo à igualdade aterrada.

Deveria germinar a fome de mudança
para que a miséria morresse dentro de portas
e não morresse Abril à frieza do ferrolho.
O povo nunca ordenou. E continuamos impassíveis
com o Maio a desflorar-se caído das maçanetas.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Vistam-se do presente [278]



Vistam-se do presente
em brisas de carinhos, serenos,
semeando gestos a concertar o futuro.
Aguardem, calmamente,
que desabroche o que plantaram
na mira da Primavera do sonho.
Do chão, colham o fogo
e a luz, renascidos,
com a loucura sadia a nutrir-se
no sofá vermelho dos sentidos.
Amigos, omitam o ferro e a ferida.
Sejam luz dentro da luz,
um clarão onde não há o ontem.
Nem o depois. Só o agora.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

Encontrei a cidadela [277]



Encontrei a cidadela, assinalada
por estandartes, sob o distraído olhar
do castelo, velho, de costas para o burgo
e com o nariz metido no mar.

Não vi canhões nem portas da traição,
intangíveis por falta de inimigos,
mas avistei sargaços em catadupa
nas vagas da caravela a mim abraçada.

Provei, nervoso, o sabor da alegria
há tanto tempo amuralhada, sem pé
nem tempo para encher piscinas de marés.

As gruas, ao largo, batiam palmas,
que ecoavam em redutos
de há muito conhecidos. Os nossos.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

A coxear fora do ritmo [276]



Há muito que percebemos
que o que sempre procuramos é um dia
mais claro que o de ontem, um azul mais azul
do que o que temos e tudo, em nós,
a exalar felicidade. Enquanto isso não chega,
é à pouca sorte e aos outros que, sobranceiros,
endossamos as razões de tal desgraça.
Ainda não aprendemos a ser felizes
com o que temos e, preguiçosos, pouco ou nada
fazemos para que aconteça o que queremos.
Muito menos aprendemos
que os outros querem o mesmo, e que é em nós
e no acaso que eles veem a raiz dos seus fracassos.
Crentes e infelizes, desafinados,
mas firmes e professorais, cantamos o fado
com um pé na fé da sorte à viola e com o outro
a coxear fora do ritmo, achando que estamos certos.
Errados, a discordar à guitarra da verdade e idiotas,
estão quase todos ou mesmo todos os demais.



quinta-feira, 7 de maio de 2020

Procuro-te [275]



Procuro-te, no limiar da janela,
com a hora do lobo [que alimentamos,
já corpulenta] a afoguear a garganta.

Nas mãos, a pequenez da distância
a derreter a manteiga [rubra e casta]
no pão que as nossas bocas semeiam.

Resisto às cortinas como o ouro
no fundo do oceano [sem estragos]
mas não ao dedo que tens na boca.

Vejo-te multiplicada em cada quadradinho
da janela, embaciado no avesso
pelo ar que ainda não respiras.

Amolecidos pelos óculos de Pessoa,
os teus lábios [chamejantes e assertivos]
declamam o espelho de ti no que escrevo.

Do teu olhar [que eu não vejo nem oiço, mas
sinto] não me bastam dois sorrisos nem o som
que a tua rouca voz rouba ao silêncio.