Translater

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Recordar é não viver [290]


Em tempos, sucumbiste à valsa firme do desejo,

até aí amordaçado nos recantos

que em ti se agigantavam,

e trucidaste o vazio, vivo e mole da saudade,

com o fado da ausência desgrenhada pela distância.

 

A fonte do bálsamo dos bálsamos, respiração

do teu corpo tão veemente quanto indomável,

floriu, então, nas tuas mãos,

bailarinas em ondas de prazer,

germinando inadiável essa viagem libertária.

 

As tuas costas, arqueadas, retesavam

todas as cordas de uma harpa em melodia solitária,

onde dedilhavas, febril, a dança do ventre inabitado

até me achegares ao teu peito.

 

Recordar é não viver,

é uma traição à essência do presente.

O que fomos, não existe.

Por isso, peço nova luz no teu colo tão amado.




quinta-feira, 23 de julho de 2020

À noite [289]


À noite,

sempre que toco os teus seios,

eles perdem a lisura e ficam

mais convexos ao tacto e à mercê.

 

Deles e das tuas linhas

de cetim e de veludo em feitio violeta,

aconchegantes e côncavas,

ficam-me no corpo, durante o sono,

o bordado das formas

e o quebranto dos perfumes.

 

Devia ficar acordado

a absorver continuamente esses prazeres

porque, de manhã,

os seios ganham a lisura do costume

e, do sentido, apenas há

vestígios amarrotados

nos lençóis e nas olheiras.

 

Ou talvez não,

porque volto a acreditar nos Deuses

sempre que acordo para ti.

 


quinta-feira, 16 de julho de 2020

O tamanho dos meus bolsos [288]



Por mais que as minhas mãos o investiguem,
não conheço o tamanho dos meus bolsos.

Sei que eles mudam de feitio a cada dia,
mas estou em crer que o que eu não sei,
sem todavia o querer, é o justo alcance
das minhas toscas mãos
e o que elas podem ou não sabem perceber.

De mãos atadas na pergunta,
ando de bolsos vazios,
à solta, enquanto não souber o que lá cabe
e o que lá pode viver sem ficar asfixiado,
correndo o risco de criar em cada bolso
um endereço furado, sem respostas.

Nesse reviralho de bolsos e mãos
a abarrotar de incertezas,
sei que há um vaivém preocupado
em te perder, de pena vermelha à mão
de tamanha indecisão
no que te quero dizer, porque não sei
se a tua brisa enche ou transborda
o meu vazio a doer.

Só sei que enlouqueço [se enlouqueço…]
ao sentir o teu fogo a aquecer a vontade
sem controlo que me invade de te querer.



quinta-feira, 9 de julho de 2020

Vou precisar de ti [287]



Vou precisar de ti
para colocarmos no meio da ponte,
de onde te escrevo,
todos os sonhos que tivemos.
Com um beijo, lançá-los-emos ao rio
para que vão até à foz do esperado.

Vamos, também, trocar de personalidade,
para não confundirmos
o Doutor Jivago com o Omar Sharif,
nem a Lara com a Tonya.
Cairemos, a pés juntos, no recomeço.
Seremos David Lean
e personagens sem as dores de cabeça
do arbitrário dever nos calcanhares.

No final, seremos amantes a dar ao corvo
o pão envenenado que o pecado cozeu.
Seremos, talvez, Romeu e Julieta causais,
porque eu não tenho vocação para Pedro
nem tu aceitarias ser Inês.

Mas, não te assustes, é apenas um guião
que vai cair ao rio do meio da ponte.
Renasceremos
águas claras e livres a correr até à foz,
construindo as margens do nosso fado.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

A vontade surda-muda de nos termos [286]



Na verdade, nunca foste minha.
Nem eu deveras fui teu.
A nossa entrega teve
as asas da liberdade dos pássaros vestida.

Antes disso, gostava sossegadamente
da essência das coisas e era feliz.
Era um gostar de alguém
que ama sem ter mais nada para amar.

Enquanto foste minha e eu teu,
sem o sermos, senti melhor e mais perto
o inteiro mar que nos olhava,
unos, ainda que esvoaçantes.
E fui ainda mais feliz,
porque me deste o sentir sem nada me retirar.

Agora que não te tenho, sem nunca te ter tido,
vejo que nada perdi do que me deste.
Sinto o mar como quando estava contigo.
Talvez porque, errantes, as nossas asas
se tenham tornado irrelevantes,
e sejamos, um do outro,
a vontade surda-muda de nos termos.