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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O que dói [449]

 


Os teus lábios,

que porventura sabem às amoras

acabadas de colher,

também sabem à solidão das procuras

que se fecham nos teus olhos.

 

O que magoa,

já não é o amor que não há no coração

e já nem é o arranhar das silvas

que há no cadafalso

da voz das gargantas sem amoras.

 

O que dói, mas dói mesmo,

é a boca sem pão,

é o corpo sem casa,

é a tristeza ser uma árvore que cresce,

já seca pela noite da incerteza,

com as raízes enterradas não sabes onde.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Passei ao lado [448]

 


Passei ao lado

das florestas de embondeiros,

das vastidões de capim

e da negra irritação dos indígenas,

tal como da brancura do medo às catanas

e aos relâmpagos da razão capital.

 

Involuntário,

devolvi à nascente o esplendor maternal

das noites de paz,

que só terminavam com o café matinal

a inundar a urgência de apanhar o comboio

em andamento totalitário,

de maquinistas com o poder único

[mas de faúlhas ingénuas…]

de apitarem amordaçados pelo regime.

 

O vapor,

escuro e ruidoso,

foi-se tornando uma lembrança

de bancos de pau e carvão,

mas não fugi do berço

onde, em liberdade, a palavra primitiva

é a manteiga do motivo

ou o sal da ideia,

a procedência que nos faz reproduzir

ou escorregar

na língua do sonho.

 

Até que cheguei aqui

[já global…],

onde as asas das borboletas,

russas, chinesas ou norte coreanas,

provocam tempestades totalitárias,

onde já não podemos fugir à irritação

de outros indígenas, sem embondeiros,

sem acácias

e sem a razão,

mas com a força das armas.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Inescusável [447]

 


Sem os teus passos,

custa-me tanto caminhar e,

no meu compasso,

a tua imagem acelera o ritmo do que observo,

tornando secundário

tudo o que vejo.

Mesmo invisível,

o espaço da tua imagem viaja comigo

e nada o preenche,

porque, sem ti,

não há caminhar que chegue a lugar algum.

Sem os teus passos ao lado dos meus,

há em mim

uma fraqueza com as pontadas

das coisas inúteis,

porque é a ti que eu quero, toda,

ou até um bocadinho mais que toda,

inescusável.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Cordeiros [446]

 


Cordeiros,

somos milhares de milhões.

De sonhos mansos, a revolta é virtual,

enquanto os indignos se governam

e nos matam como esponjas sequiosas.

Quantos milhões de mortes atómicas

para chegarmos à investida

que corte pela raiz quem da paz faz tábua rasa?

Será preciso que cada quilowatt

custe um dia de salário?

Que as bombas nos destruam as casas

para esganarmos os criminosos

que temos no trono instalados?

Absurdo comodismo,

arma de balas egoístas que nos acertam

e vão cavando o túmulo

do nosso desalento amortalhado

se não galoparmos com o freio nos dentes.

Até lá,

somos milhares de milhões de cordeiros

à espera do milagre,

a fingir de indignados, sem chama,

a pastar o protesto

nas secas ervas do silêncio acobardado.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Se eu pudesse [445]

 


Se eu pudesse,

sentava-te ao piano, libertava-te,

para que tocasses a melodia

que tenho escrita para ti.

Não em papel,

está na prisão

deste silêncio dos meus dedos,

que morrem na surdez

de te ouvir e tocar

sem vestígios de ruído.

Dedos que se encarquilham

na falta de te sentir.

Na minha mente

só as notas imperfeitas ecoam,

distorcidas,

sem carícias e beijos sonantes.

Se eu pudesse,

fazia com que a saudade libertasse

a nossa liberdade.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Por vezes [444]

 


Por vezes,

a planície das ideias afasta-nos de tudo

como folhas secas que o vento empurra

e, nesses momentos,

podemos ver o que somos e temos

e o que pretendemos ser e ter.

 

Tenhamos, então,

o entendimento disso

como da ausência de ondas no mar se tratasse,

onde o nosso juízo nada distingue

e é um barco sem destino.

 

Suspensos e simples de emoções

no tempo deste quase ausente existir,

deixamos as nossas insatisfações no vazio,

e, numa única nuance, num único gesto,

podemos ser perfeitos imortais.

 

Então, qualquer momento que seja,

ainda não é vivido com saudade,

porque, sem a inquietação de o pensarmos,

somos a realidade do instante e felizes.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Ditadura [443]

 


Dentro de ti,

és a mulher sem-par que tenho,

mas não pego,

de ti, o gozo nos meus braços totalmente.

 

Dentro de ti,

vou-te perdendo tolhido

pelo mutismo da renúncia.

Cada manhã despida de horizontes

faz crescer o exílio

e cada voz em silêncio é uma grade

acrescentada na prisão.

 

Dentro de ti,

com o sol a morrer em pegadas de imundície

e varrida pela brisa

enxovalhada na mentira que campeia,

não há trabalho nem pão.

 

Dentro de ti,

já não sei se és minha mãe,

porque os tempos, mátria minha,

não se cruzam com a nossa liberdade.

Mas eu não te renego, ainda que hoje sejas

a minha pátria mal-amada.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Operação especial [442]

 


De súbito,

fecharam-se todas as portas.

O mesmo aconteceu com as janelas.

O estranho acontecimento,

nada o deteve.

E não eram portas e janelas

deste ou daquele, nem mesmo apenas

as das casas de famílias enlutadas.

Todas elas se fechavam

ao ritmo

e ao som

de uma música estranha, imparável,

embora com distintos

começos e andamentos.

A ordem,

para que o céu não se cobrisse de nuvens

dentro dos lares,

ninguém a deu, foi ditada

pelos estrondos cada vez mais próximos.

As flores de cada jardim

ficaram submersas,

de esperanças fuziladas

por cogumelos, torturas e violações.

Os sobressaltados inquilinos

procuraram abrigo debaixo do chão

em casas sem portas e janelas.

Barbaramente,

houve uma porta, apenas uma,

que recebeu a maldita ordem

para não se fechar:

a porta do céu,

para que as bombas pudessem cair

como chuva aleatória, e as almas,

dos seus inertes corpos separadas,

subir à derradeira morada.

 

© Jaime Portela, Outubro de 2022