Translater

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Escrever é deslembrar [603]

 


Para nos afastarmos da vida,

ouvimos, inativos,

música que nos embale.

Outras artes, teatro ou dança,

não nos separam da vida,

são observáveis

e vivem de idêntica humana realidade.

Na cisão que a literatura opera,

a vida é um fingimento,

um romance é uma narrativa

do que não existe

e um poema é a manifestação

de conceitos e emoções

num código em que ninguém se expressa.

Escrever é deslembrar,

é arte e engenho

de um divórcio intencional da realidade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Escrever é uma insubmissão [602]

 


Escrever

é esvaziar um lago sempre cheio,

apesar do rio que alimenta

levar até à foz

a água que jamais regressa ao lago.

 

Na escrita há uma embriaguez

feita de essências da mente,

de heroína apanhada nos recônditos

dos escombros da fantasia,

de flores multicolores

colhidas no túmulo das intenções.

 

E há plantas desbragadas

que amotinam os braços

nas bordas impercetíveis

da abundância de ventos do ser.

 

Escrever

é uma insubmissão e um vício,

é uma droga que se venera e consome

num abraço à liberdade.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Perceções [601]

 


A grandeza da nossa existência

é a perceção que temos dela.

 

Para o camponês,

cujos limitados terrenos lhe são tudo,

as suas terras são um império.

 

Para o latifundiário,

cuja vastidão de terras ainda é insuficiente,

o latifúndio é pequeno.

 

Assim,

o pobre sente ter um império

e o rico precisa de mais.

 

Em rigor,

não temos, não vemos e nem somos

mais que as nossas perceções,

tudo é relativo.

 

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Dúvidas [600]

 


Havendo leis que nos transcendem,

como a lei da gravidade

ou da certeza da extinção do sol

e da nossa vida,

valerá a pena tanto esforço,

seja na guerra ou na tecnologia,

se afinal os pobres são cada vez mais?

 

Se formos escravos

acorrentados à birra de um deus,

obedientes ao seu governo inalterável

de um fim incompreensível,

qual é a utilidade da vida?

Por que nos fez nascer para morrer?

 

Mas há conjeturas doutrinadas

que nos dão a ilusão

de podermos perceber o incompreensível,

que nos procuram convencer

da razão de tantas coisas erradas,

que nos dizem podermos dissolver

qualquer dilema ou mistério.

 

Mas, se não há Deus,

como é que tudo isto aconteceu?

E, se Ele existe,

porquê e para quê desta maneira?

 

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2025